domingo, 20 de dezembro de 2020

Dos Nossos Alunos

Porque é Natal.

Porque há palavras que são mil imagens.

Porque há imagens que são palavras.























Oficina de Artes e Educação visual - 7º, 8º e 9º Anos 

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Po.e.mas Sol.tos

POEMAS DE NATAL




História Antiga

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da nação.

Mas, por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças

                                                   Miguel Torga


Natal…,

Natal… Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
‘Stou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

                  Fernando Pessoa


Chove. É Dia de Natal

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

                      Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

 

 

Natal

Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.

Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.

Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.

Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.

Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.

                                           Manuel Alegre, in 'Antologia Poética'

 

 

Natal, e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido…
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave…
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

                  – David Mourão-Ferreira, em ‘Cancioneiro de Natal’.

 

  

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

O CONTO DO MÊS

 

A Noite de Natal – Sophia de Mello Andresen

O amigo

Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à volta.

No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do cedro que Joana brincava. Com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa maior e mais complicada para orei dos anões.

Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas. Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu jardim.

E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros meninos. Só sabia estar sozinha.

Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de Outubro.

Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono. O coração de Joana deu um pulo na garganta.

— Ah! — disse ela. E pensou: «Parece um amigo. E exatamente igual a um amigo.» E do alto do muro chamou-o:

— Bom dia!

O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu:

— Bom dia!

Ficaram os dois um momento calados.

Depois Joana perguntou:

— Como é que te chamas?

— Manuel — respondeu o garoto.

— Eu chamo-me Joana.

E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio. Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta. Até que o garoto disse:

— O teu jardim é muito bonito.

(…)

E foi assim que Joana encontrou um amigo.

Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as suas corolas quando ele passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os pássaros vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha.

 

 

A festa

 

Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal.

E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada.

Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos.

(…)

Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário.

As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.

Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes.

Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio, mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das cerejeiras tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos.

E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas coisas brilhantes: velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas no céu havia uma festa maior, com milhões e milhões de estrelas.

Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava em nada. Olhava a imensa felicidade da noite no alto céu escuro e luminoso, sem nenhuma sombra.

Depois voltou para casa e fechou a porta. — Ainda falta muito tempo para o jantar? — perguntou ela a uma criada que ia a atravessar o corredor.

— Ainda falta um bocadinho, menina — disse a criada. Então Joana foi à cozinha ver a Cozinheira Gertrudes, que era uma pessoa extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia.

A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os dois perus do Natal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos perus, muito esticada sobre o peito recheado, já estava toda doirada.

— Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana.

A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os perus.

— O que é? — perguntou ela.

— Que presentes é que achas que eu vou ter?

— Não sei — disse Gertrudes — não posso adivinhar.

Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e por isso continuou a fazer perguntas.

— E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?

— Qual amigo? — disse a cozinheira.

— O Manuel.

— O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.

— Não vai ter presentes nenhuns!?

— Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.

— Mas porquê, Gertrudes?

— Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.

— Isso não pode ser, Gertrudes.

— Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.

Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era «assim mesmo».

Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.

Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha. De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:

— Já chegaram os primos.

Então Joana foi ter com os primos.

Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos para a mesa.

Tinha começado a festa do Natal.

Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às outras: «Bom Natal». Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo isto Joana pensava:

— Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente.

Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes.

E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes.

O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.

Primeiro veio a canja, depois o bacalhau assado, depois os perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os ananases.

No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a porta e entraram na sala.

As luzes elétricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do pinheiro.

(…)

E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se ouvia.

Joana olhava, olhava, olhava.

Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.

(…)

E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes.

— Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.

— Bom Natal — respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um momento. Depois perguntou:

— Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?

— O que é que eu disse?

— Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes.

— Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.

— Mas então o Natal dele como foi?

— Foi como nos outros dias.

— E como é nos outros dias?

— Uma sopa e um bocado de pão.

— Gertrudes, isso é verdade?

— Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.

— Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.

Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:

— Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.

E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais.

«Que frio lá deve estar!», pensava ela.

«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.

«Que triste lá deve estar!», pensava.

E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro.

— Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois suspirou e pensou:

«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»

Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.

Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.

«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.»

Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas.

Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu.

(…)

 

A estrela

 

Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém.

Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a olhavam e a ouviam como pessoas.

«Tenho medo», pensou ela.

Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.

(…)

O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-se a massa escura dos pinhais.

«Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana.

Mas continuou a caminhar.

Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara como uma faca.

«Tenho frio», pensou Joana.

Mas continuou a caminhar.

À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando maior. Até que ficou enorme.

Joana parou um instante no meio dos campos.

«Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.

E olhava em todas as direções à procura de um rasto.

Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à sua frente não havia rasto.

«Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.

E levantou a cabeça.

Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava.

«Esta estrela parece um amigo», pensou ela.

E começou a seguir a estrela.

(…)

Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.

«Será um lobo?», pensou.

Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.

«Será um ladrão?», pensou.

Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto azul todo bordado de diamantes.

— Boa noite — disse Joana.

— Boa noite — disse o rei. — Como te chamas?

— Eu, Joana — disse ela.

— Eu chamo-me Melchior — disse o rei. E perguntou:

— Onde vais sozinha a esta hora da noite?

— Vou com a estrela — disse ela.

— Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela.

E juntos seguiram através do pinhal.

E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite.

Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras.

— Boa noite — disse ela. — Chamo-me Joana e vou com a estrela.

— Também eu — disse o rei — também eu vou com a estrela e o meu nome é Gaspar.

E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis e os pinheiros escuros.

Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era preta.

— Boa noite — disse ela. — O meu nome é Joana. E vamos com a estrela.

— Também eu — disse o rei — caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar.

E juntos seguiram os quatro através da noite.

(…)

Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa claridade a estrela parou.

E continuaram a caminhar.

Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos anjos o iluminava.

E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o burro e dormia sorrindo.

Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra.

E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar.

Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel.

— Ah — disse Joana — aqui é como no presépio!

— Sim — disse o rei Baltasar — aqui é como no presépio.

Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

A Noite de Natal

Porto, Figueirinhas, 1989

(Adaptação)


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Dos Nossos Alunos

 SOU UM LIVRO...




Fora há bastante tempo. Tanto tempo, que já tinha perdido a noção. Um ano? Dois? Cinco? Não sei. Só sei que naquele dia, vi a luz do sol pela última vez. A verdade, é que eu sou um livro. Um bom e velho livro. Já são distantes as memórias em que me liam vezes e vezes sem conta, e falavam sobre o meu conteúdo. Mas esses tempos tinham-se ido. Foi naquele dia, naquele terrível dia, em que me colocaram numa caixa, apenas para ser esquecido. Era uma bela tarde, os raios de sol entravam pelo meio das cortinas. O meu dono já não me pegava há algum tempo, portanto, quando ele me agarrou com as suas mãos que me eram tão familiares, senti a felicidade de ser lido outra vez. Mas isso não aconteceu. Em vez disso, colocaram-me numa caixa, e era lá que eu estava desde então.

 Mas não estava sozinho. Ao meu lado, estavam os outros volumes da minha coleção. Sim, sou um livro, mas não sou daquelas enciclopédias ou dicionários grossos e pesados. Sou apenas um livro para jovens, que conta algumas das aventuras de um grupo de exploradores. E quando olhava para os meus caros colegas, via neles a mesma expressão de tristeza, de saudade dos tempos dourados. Agora, o pó acumulava-se, as minhas páginas amareleciam, as minhas letras desvaneciam-se, enfim, ia ficando desgastado pelo tempo. É engraçado. É engraçado, mas também triste, como somos apenas objetos, para o breve entretenimento dos humanos. Fazem-nos, compram-nos, leem-nos e descartam-nos. É um processo de tristeza e dor sem fim.

 Mas espera, o que seria aquilo? Seria possível? Uma nova luz? Os raios de luz penetravam novamente na caixa e iluminavam nossos rostos novamente. Uma nova luz, uma nova esperança nos iluminava a cara, e com lágrimas de felicidade, esperava ver o meu velho dono. Mas outra vez, isso não aconteceu. Contudo, não foi uma surpresa triste, nem uma boa, foi apenas uma surpresa. Já não era o meu velho dono que me carregava, mas sim uma jovem de cabelos loiros e pele de porcelana. Parecia uma boneca. Conseguia ver nos seus olhos, ela era uma autêntica apaixonada pela leitura. Quando ela me abriu novamente, suspirei de alívio. Era a primeira vez em anos que alguém me tocava, me abria, me lia. Era bom falar novamente com alguém. E assim começou uma nova luz, uma nova esperança, uma nova vida.

Gustavo Fidalgo, 10ºA



 

Eu sou um livro, fabricado em Portugal há muitos anos atrás, com milhares de páginas fininhas, uma capa bem ilustrada, mas uma lombada que não se destaca muito nas prateleiras da biblioteca. O meu papel, que em tempos foi branco, está cheio de letrinhas pequeninas e histórias que o meu autor escreveu para partilhar com o mundo!

            Eu sou um livro, de muitos na minha biblioteca, colocado numa estante que a maior parte das pessoas evita, onde apenas as obras mais complexas estão expostas. As poucas que leem a minha contracapa não costumam gostar de mim. Como é possível resumir um livro tão grande num texto de dois minutos!? São raríssimas as pessoas que ousam folhear as minhas páginas, mas quando me abro passo horas a contar as minhas histórias de aventura! No entanto nunca me levaram para fora deste mundo, acabo sempre o meu dia no topo da minha estante. Os meus vizinhos mais pequenos passam a vida lá fora, provavelmente porque à primeira vista parecem mais interessantes do que eu. Talvez esse seja o preço a pagar por ser um livro tão detalhado, cheio de segredos e cheio de aventuras escondidas no meio das páginas. É preciso folhear-me bem para encontrar a minha verdadeira essência.

            Eu sou um livro, e espero pelo dia em que alguém me leve consigo à descoberta de um mundo novo. As páginas transformam-se em cenários nos quais viajar, conhecer novas terras, passear por caminhos desconhecidos e viver aventuras inesquecíveis! O meu autor escondeu isso tudo em letras pequeninas, para que estas apenas fossem lidas pela pessoa ideal. Para uns posso ser um mar de maravilhosas histórias, para outros sou apenas um livro...

Diogo Pinheiro, 10ºA



 

Posso-me transformar em tudo que imaginares dependendo da tua interpretação, pois afinal as palavras têm o sentido que nós lhes damos. Só tens que me dar uma oportunidade e mostrarei que nós, livros, temos muito para oferecer, desde sabedoria a criatividade e imaginação, desde tristeza a felicidade, nem vais acreditar no que tens perdido. Nós temos um universo todo para te oferecer.

Consigo levar-te às praias ensolaradas de Gold Coast onde os tubarões e crocodilos tal como as raias e alforrecas ganham vida e mostrar-te os arranha-céus e os canais que lá existem. Posso também levar-te ao passado, onde és um rei ou um pirata ou até mesmo um cientista cheio de questões mas sem respostas por ser limitado pela tecnologia do seu tempo. Tenho o poder de te levar ao Espaço ou até Hogwarts se quiseres. Posso ser uma banda desenhada ou uma obra de poesia. Posso ser um best-seller ou então um livro desconhecido mas com muito para oferecer. Cabe-te a ti escolheres.

Sou misterioso mas também muito transparente. Posso-te fazer chorar como te posso fazer rir. Gosto de deixar as pessoas pensativas e intrigadas, de as deixar cultas e de as ajudar.

Sempre que passares por um mau bocado lembra-te que estou sempre disponível para te fazer feliz.

 Guilherme Ribeiro, 10ºA

 

 

 

 

Eu sou um livro. Mas não sou um livro qualquer; sou um livro muitíssimo luxuoso! Tenho uma capa dura de pele vermelha e ilustrações douradas. Sou lindo de ver e melhor ainda de se ler! 

Ninguém me abre há séculos; apenas me pegam para limpar o pó…

Nesta livraria faço muitos amigos novos, acabadinhos de serem impressos, e todos os dias perco alguns. 

Cada dia é uma nova esperança: desde o primeiro minuto que a livraria abre até ao último minuto que fecha fico à espera que alguém me dê um lar. 

Posso ter um ar muito requintado mas apenas quero alguém que me folheie até ao final com todo o carinho; que admire as minhas ilustrações; que me deixe levá-lo pelas mais belas viagens a lugares nunca antes visitados.

São lugares mágicos com criaturas místicas!

Sou um livro inspirado em mitos, lendas e narrativas. Sou um livro escrito em prosa e poesia. Vários autores enchem as minhas páginas.

Sou um livro que tanto posso aconchegar os serões frios de inverno, como animar as tardes quentes de verão.

Um dia serei presente de aniversário ou presente de Natal? Terei alguma dedicatória para alguém muito especial? Guardarei algum segredo escondido no meio das minhas páginas? ou talvez até a fotografia de uma amada ou amado...? Serei o prémio de um grande vencedor? Passarei de geração em geração? Contando e recontando sem nunca me cansar as minhas histórias, lendas e narrativas? Serei memórias de infância? 

 E se algum dia me guardarem num baú, fechado num qualquer sótão e se esquecerem de mim... 

Sou um livro, um amigo, companheiro e confidente.

Sou um livro, lugar eterno onde se juntam ensinamentos e diversão.

Não sou digital nem virtual; sou um livro tal e qual. Tenho o cheiro do couro na pele vermelha da minha capa e quando sacodem as minhas folhas, qual aroma das páginas ainda por estrear.

Mãos frias, mãos quentes, mãos presentes para tocar, abrir e folhear.

Sou um livro e é tudo o que mais posso desejar.

 

Maria João Moreira, 10ºB

 



Sim, eu era um livro, um monte de papel e cartão, inútil.

Ficava arrumado no canto de uma estante de uma biblioteca municipal, junto de muitos outros, ninguém me via, ninguém me queria. Adoro crimes e mistérios, mas as minhas páginas estavam amareladas, a minha capa cheia de poeira… Mas eu ainda tinha esperança de um dia ser tocado por alguém.

Passavam os dias e nada acontecia, começava a perder a esperança, ninguém aparecia, apenas aranhas e outros insetos. Afinal para que é que eu fora feito? Será que alguém sabia da minha existência? Tudo parecia muito vazio.

Até ao dia em que o meu herói apareceu, ele era apenas um adolescente, mas bastou o seu toque para que toda a poeira e sujidade desaparecesse. Finalmente eu tinha alguém para passar o tempo, tinha alguém para conversar comigo, mesmo eu sendo um livro. Eu contava-lhe histórias, ele ria-se, chorava, ficava surpreendido, tudo por causa do que estava escrito nas minhas páginas. Depois de tanto tempo, finalmente eu tinha uma casa, tinha a minha própria estante.

Sim, sou um livro, sou uma história, sou um conjunto de emoções, sou conhecimento. Tenho orgulho de ser quem sou.

Daniel Gonçalves, 10ºB

 

 

 

 

Serei um livro?  

Apesar das chamas das velas que bruxuleiam inquietas, a sala é escura. A cera quente pinga sujando o tampo da mesa de madeira escura em que me encontro. Este quarto mais parece uma cela. As janelas estão sempre fechadas e as portadas trancadas e nem o zumbido de um inseto temeroso se faz ouvir.  

Sou um livro. Não. Não sou nada um livro. Por enquanto, sou apenas um monte de páginas que nem cosidas estão umas às outras. Nem tão pouco uma capa miserável eu tenho. Sou um livro em crescimento, incompleto, inacabado. Sou um livro no seu estado mais básico. Um monte de palavras escritas por uma mão muito habilidosa numas simples folhas. Habilidosa, mas temível. Quando a inspiração lhe é soprada por uma bendita musa, escreve furiosamente. A pena a arranhar o papel, deixando bem marcados todos os seus pensamentos mais profundos. Algo que dói, mas de uma maneira boa, uma dor à qual nós, livros, nos sujeitamos orgulhosamente. Mas, por vezes, não lhe agrada o “Era uma vez” ou acha enfadonho o príncipe ou torce o nariz ao “e viveram felizes para sempre” e então rasga-o. Rasga tudo em mil bocadinhos. Uma dor que não tem comparação com o gadanhar ligeiro da ponta da pena. 

Por isto, temo por mim. Nunca podemos ter a certeza de que as nossas palavras se libertem das nossas páginas, que se entranhem nalgum espírito bem-aventurado. Esta secretária é o purgatório. E ele, Deus.    

Do outro lado do abismo que é esta secretária, encontra-se uma estante de madeira trabalhada. Está escondida na sombra, mas sinto a presunção dos seus sucessos. Os vários motivos do seu orgulho. O maior desejo de todos os aspirantes a livros é um lugar naquela estante. Um pedido tão simples: que nos cosam as páginas, nos encadernem com uma capa de couro e nos coloquem delicadamente ao lado dos orgulhosos volumes. 

 Enfim, a verdade é que poucos dos manuscritos que nascem daquela pena vivem o suficiente para que lhes gravem o título a dourado. Serão as minhas frases belas o suficiente para cativar aqueles que me folhearem? Serei eu digno de um lugar de honra numa estante de uma biblioteca conceituada? Serei eu capaz de encontrar o meu final feliz? Serei eu, algum dia, um livro? 

 


Leonor Fernandes, 10ºB