quinta-feira, 21 de abril de 2016

Encontro com Ian McEwan - 3


Adam Begley: Já escreveste algum script de cinema que te tenha deixado satisfeito?
Ian McEwan: Senti-me bem com um bom número deles. O que acontece a seguir é que nos pode magoar. A minha primeira experiência, The Ploughman’s Lunch, que decorreu na perfeição, estragou-me. O Richard Eyre e eu decidimos que gostaríamos de fazer um filme com um ambiente que retratasse o estado da nação. Durante vários meses, recolhi todo o tipo de materiais – andei pelos estúdios da BBC, li livros sobre a crise do Suez, assisti a conferências políticas e acompanhei o trabalho em torno de algumas publicidades televisivas. Mais tarde, visitei a Polónia no tempo do Solidariedade e imaginei como é que uma nação se podia construir a partir do sonho.
Graham Greene tem uma boa imagem deste processo – há momentos de inspiração a que dá o nome de piscinas. Escrever um romance consiste em escavar as trincheiras entre as piscinas. As minhas piscinas não eram nada de tão grandioso que lhes pudesse chamar uma fonte de inspiração – eram apenas os cenários ou cenas que eu queria. Assim que arranjei forma de estabelecer uma ligação entre tudo, redigi um plano para o filme em apenas duas páginas e mostrei-as ao Richard, durante o almoço, no National Theatre, onde ele trabalhava. Ele leu-as e disse de imediato que era o tipo de coisa que queria fazer.
Escrevi o script em seis semanas. O Richard tinha algumas sugestões como, por exemplo, que seria bom se a personagem principal regressasse a casa para podermos compreender os seus antecedentes. A Guerra das Malvinas começou e forneceu alguns paralelismos interessantes com o Suez. Mas, na verdade, aquelas duas páginas que mostrei ao Richard no início eram, mais ou menos, o filme tal como acabou por se fazer. A experiência foi simples e agradável. Nada correu mal. Na altura, não fazia ideia de como isso era incomum.
AB: E como foi a tua experiência com o filme The Innocent?
IME: Morosa, confusa, dolorosa. Eu sabia que era má ideia adaptar o meu próprio romance para o ecrã, mas deixei que me convencessem a fazê-lo. Senti-me atraído pela oportunidade de incorporar a queda do Muro de Berlim, que ocorreu alguns meses depois de ter terminado de escrever o romance em junho de 1989. Todos os elementos eram óptimos separadamente – um excelente conjunto de atores, com a Isabella Rossellini, Anthony Hopkins e Campbell Scott e John Schlesinger na realização. Mas faltou a química, como se diz. Não era um grupo feliz. Só as cenas de ação ficaram bem, como sempre ficam.
AB: De onde surgiu a ideia para O Jardim de Cimento? Penso sempre que se trata de um livro sobre “uma infinita tristeza municipal” – uma linha do teu Two Fragments.
IME: Há anos que andava a adiar escrever um romance. Regressei de uma espectacular primeira visita aos Estados Unidos, em 1976. Andava a brincar com ideias acerca de crianças que tentavam sobreviver sem adultos – esta é a base de muitos livros infantis e, naturalmente, a essência de Lord of the Flies. Andava a pensar na possibilidade de escrever uma versão urbana dessa história, mas ainda não tinha um caminho definido. Nessa altura, morava em Stockwell, no sul de Londres. Era uma vizinhança desolada, de prédios altos, e uma terra de ninguém coberta de ervas daninhas. Certa tarde, estava sentado à secretária e aquelas quatro crianças, com as suas diferentes identidades, surgiram de súbito na minha imaginação. Não tive que as construir, já me surgiram completas. Tomei algumas notas e caí num sono profundo. Quando acordei, pelo menos sabia que romance queria escrever. Trabalhei obsessivamente durante um ano, cortando partes da escrita a toda a hora, porque queria que o romance fosse breve e intenso.
AB: Foi algum tipo de exorcismo?
IME: Bom, mais um resumo. Este e o meu romance seguinte, Estranha Sedução (The Confort of Strangers), pôs fim a um período de dez anos na minha escrita – ficção curta, formalmente simples e linear, claustrofóbica, dessocializada, sexualmente estranha, escura. Finalmente, senti que me tinha encurralado a mim mesmo. Afastei-me da ficção por uns tempos. Escrevi um filme para a televisão que se passava durante a operação de descodificação em Bletchley Park durante a guerra. Depois, foi The Ploughman’s Lunch e um oratório para o Michael Berkeley. Quando, em 1983, iniciei um novo romance, A Criança no Tempo, já pensava em termos de localizações físicas específicas e tempos – mesmo o próprio tempo – e no tecido social e num certo grau de ambição formal.
AB: A Criança no Tempo começa com o rapto de uma criança – um daqueles momentos dramáticos que mudam a vida e que se tornam um marco.
IME: Sim. Ainda tinha interesse em escrever acerca dos limites da experiência humana. Mas agora começava a encarar as personagens com maior seriedade. Esses momentos de crises estavam destinados a tornar-se uma forma de explorar e testar o carácter. Como podemos suportar, ou não suportar, uma experiência extrema, quais as qualidades morais e interrogações que são avançadas, de que modo vivemos as consequências das nossas decisões, como é que a memória nos atormenta, o que o tempo faz, quais os nossos recursos diante de uma queda. Na época, isso não era exatamente  uma escolha consciente ou um programa sistemático, era apenas o que sucedia em vários romances, começando por este. E é claro que essas cenas – o rapto da criança, os cães pretos, a queda de um balão de hélio, etc. – ofereciam, em si mesmas, possibilidades ficcionais atrativas. Apresentavam desafios de ritmo, descrição, uma espécie de rufar dos tambores fraseado, cadências que só conseguimos com cenas de ação. E ofereciam igualmente uma forma de manter o leitor preso à leitura. E eu conseguia ter ação e ideias. Durante algum tempo, desenvolvi um certo gosto por esses diferentes elementos.
Em 1986, estava no festival literário de Adelaide, onde li a cena de A Criança no Tempo em que a rapariguinha é raptada de um supermercado. Tinha concluído um primeiro esboço na semana anterior e queria experimentá-lo. Assim que terminei, Robert Stone levantou-se e pronunciou um discurso pleno de paixão. Parecia mesmo que lhe vinha do coração. Disse: “Porque fazemos isto? Porque é que os escritores o fazem e porque é que o querem? Porque é que vamos buscar, ao fundo de nós mesmos, o pior que podemos imaginar? A literatura, especialmente a literatura contemporânea, ufana-se em busca do que possa encontrar de pior.”
Ainda não tenho uma resposta clara para isso. Caio repetidamente na noção do teste ou investigação do carácter e da nossa natureza moral. Como James certa vez interrogou, o que é um incidente senão uma ilustração do carácter? Talvez usemos esses cenários mais negros para salientar a nossa própria capacidade moral. E talvez precisemos de brincar com os nossos medos dentro dos limites seguros do imaginário como uma forma de exorcismo esperado.
AB: Mencionaste o prazer que sentiste ao escrever O Inocente (The Innocent). Alguns leitores poderão achar isso difícil de entender, dada a reputação sangrenta do romance – uma descrição minuciosa de um corpo cortado membro a membro e empacotado numa mala.
IME: Essa reputação baseia-se em meia dúzia de páginas. Quanto ao resto, no que me tocava, O Inocente era, para mim, uma nova partida em direção ao romance histórico. A transferência de poder dos britânicos para os americanos foi um processo longo e demorado e só terminou na década de cinquenta, com a humilhação que os britânicos sofreram no Suez. Sempre me senti atraído por situações em que acontecimentos de grande escala se refletem na vida privada. Um jovem inglês desajeitado, engenheiro de comunicações telefónicas, a despontar na Guerra Fria da Berlim de meados dos nos cinquenta, descobrindo o poder do dinheiro e da confiança americanos, o alcance do seu exército, as seduções da sua comida, música e filmes; e uma cidade que emergia das suas ruínas, assombrada pelos fantasmas do seu passado recente – tudo isso absorveu-me por inteiro. Perdi-me em velhos mapas e fotografias. Tornei-me um engenheiro de comunicações telefónicas.
Mantive-me longe de Berlim enquanto escrevia o romance, que decorria principalmente em 1955. No entanto, no capítulo final, que tem lugar em 1987, o herói envelhecido, Leonard, decide revisitar a cidade e decidi que, já que assim era, eu podia ir com ele. Cheguei a Berlim com uma pesada gripe. Aquela metade ocidental da cidade, ousada e opulenta, não ficava no espaço arruinado que eu ficara a conhecer tão bem. Dei alguns passeios, sentindo-me velho e espantado. Visitei o prédio de apartamentos onde Leonard costumava estar com a sua amante e senti feridas de amor ridículas por uma rapariga que não existia. Fui à ponta sudoeste de Berlim, onde se localizava o túnel de espionagem. Trepei a uma cerca para chegar a um descampado. Observado pelos binóculos dos guardas da Alemanha de Leste nas suas torres de vigia, deambulei entre os montes e as trincheiras e encontrei bocados de um velho cabo telefónico, pedaços de juta feita em Chicago, um antigo interruptor. E, uma vez mais, senti a nostalgia de um tempo que nunca vivera. Tinha-me distanciado o mais que podia daquelas short stories e dois pequenos romances em que achava que o tempo e o local não passavam de distrações irrelevantes. Estava, agora, numa cidade estrangeira, sentindo o passar dos anos e convencendo-me de que era uma das minhas personagens.
AB:  Convenceste-te tal como esperavas convencer os teus leitores.
IME: Normalmente, gostaríamos de ser capazes de não nos autoiludirmos.
AB: Realizaste algum tipo de pesquisa médica para O Inocente?
IME: Fui jantar com Michael Dunnill, que era o professor de Patologia em Merton. Contei-lhe que planeava uma cena em que um homem assustado e inexperiente dissecava um corpo.
AB: E ele disse: “Oh, deve ser o Ian McEwan!”
IME: Disse uma coisa muito mais assustadora. Quando lhe perguntei quanto tempo demoraria serrar um braço, convidou-me para uma das suas autópsias regulares de segunda de manhã. “Venha…”, disse-me, “…e cortaremos um braço para ver.” “E a família?”, interroguei. E ele replicou: “Oh, o meu assistente recoloca o braço no sítio e nem se vai notar.”
Comecei a sentir sérias dúvidas relativamente àquele encontro. Pensei que a escrita estava a ir bem e que não valeria a pena exagerar. Mas também senti que, enquanto escritor, tinha a obrigação de ir. Então, afortunadamente, jantei com o Richard Eyre, que achou que ir seria uma maluquice. "Vais inventá-lo muito melhordo que o possas descrever", disse ele imediatamente e eu percebi que tinha razão. Mais tarde, mostrei a cena a Michael Dunnil e ele aceitou-a. Se tivesse ido à autópsia, teria tido que me tornar jornalista - e não me considero um bom jornalista. Consigo descrever com muito mais detalhe o que imagino do que aquilo que me recordo de ter visto. (continua)

Tradução de Jorge Simões

terça-feira, 12 de abril de 2016

Ensino de literatura portuguesa em risco no Brasil


O governo de Dilma Roussef está a ponderar a eliminação da literatura portuguesa dos currículos adotados nas escolas brasileiras. Autores como Gil Vicente, Camões, Camilo, Garrett,  Eça, Pessoa e Saramago correm o risco de se tornar ilustres desconhecidos dos estudantes a partir de junho. Também os conteúdos gramaticais poderão vir a ser eliminados.
Trata-se de um projecto polémico e que se encontra ainda em discussão, criticado no entanto por esta ser possível apenas através de comentários deixados no site do Ministério da Educação do Brasil (MEC) e não de um verdadeiro debate público.
A polémica em torno destas questões remonta já a 2011, quando, num manual escolar distribuído pelo MEC, a expressão “nós pega o peixe” foi considerada “inadequada e passível de preconceito, mas não errada”. Clóvis Rossi, jornalista da Folha de S. Paulo, comentou, na altura, que “a questão é exclusivamente linguística, alguns esquerdistas de botequim tentam politizá-la com o argumento de que a língua é um instrumento de dominação. Se fosse, deveríamos voltar a falar tupi-guarani”.
Entretanto, parece haver já algum recuo face às primeiras intenções do governo. Recentemente, fontes do MEC afirmaram que "o que pode acontecer é uma mudança na forma como o conteúdo será apresentado". A proposta em debate prevê "o ensino de textos literários tradicionais, da cultura popular, afro-brasileira, africana, indígena e de outros povos".

terça-feira, 5 de abril de 2016

Encontro com Ian McEwan - 2


Adam Begley: Homemade é a história de abertura da tua primeira colecção – é aquela história com o narrador adolescente que engana a sua irmã mais nova e a leva a praticar incesto.
Ian McEwan: Pretendia ser uma paródia de um narrador do tipo Henry Miller, cuja gabarolice sexual se estendia por frases que ocupavam parágrafos inteiros. Foi também uma vénia ao Portnoy de Philip Roth.
AB: Homemade apresenta alguns tópicos de escolha – coito, incesto, autoabuso. Virgindade espoliada. Alguma vez lamentaste ter começado com tamanho estrondo?
IME: Na altura foi divertido. Hoje em dia, tem os seus contras ocasionais, essa coisa do Ian McAbro. Às vezes, acho que nunca conseguirei escapar à minha reputação do início. Mesmo uma crítica reflexiva do Updike sobre Expiação foi marcada, à maneira dos tablóides, pelo The New Yorker como “Lust and Disgust” (Luxúria e Repulsa).
AB: Quando publicaste as primeiras histórias consideraste-te ousado?
IME: Mais impaciente do que ousado. De qualquer modo, a conversa entre os meus amigos era de tal forma escabrosa… Todos tínhamos lido o Burroughs e o Roth e o Genet e o Joyce, tudo se podia dizer e já tinha sido dito. Não me considerei um iconoclasta. Na verdade, achava que escrevia uma prosa bastante educada e conservadora. É verdade que pensava que havia um certo aborrecimento limitativo na ficção inglesa, com as suas nuances da vida de todos os dias e todas as tonalidades cinzentas – minúcias do vestuário, do sotaque, da classe social. Os códigos sociais, a forma como os podemos manipular ou sermos destruídos por eles. É um campo fértil, claro, mas eu não sabia nada sobre isso nem queria ter nada a ver com isso.
AB: Por causa dos teus antecedentes?
IME: Havia algo de curiosamente dissociado nos meus antecedentes. Quando o meu pai foi promovido, a minha família entrou numa terra de ninguém em termos de classe, já não fazíamos parte dos soldados normais, mas também não éramos exactamente elementos da classe dos oficiais. O meu colégio interno era uma experiência do sector público, destinada a fazer com que rapazes oriundos do operariado de Londres ascendessem à classe média culta. Depois, frequentei duas universidades que estavam, pelo menos em termos ingleses, agressivamente desclassificadas. Não tinha nenhum lugar especial ou sentimento de lealdade para com esses estratos intrincados e a minha ficção inicial foi escrita num estado de total indiferença a tudo isso. O meu fascínio por Kafka levou-me a pensar que a ficção mais interessante envolvia personagens que podiam viver livres de quaisquer circunstâncias históricas. Mas é claro que ninguém vive assim. Os críticos ingleses foram céleres em classificar as minhas personagens como pertencentes à classe média-baixa. É útil, como diria Larkin, podermos aprender com isso.
AB: E as crianças? Elas podem existir à margem da história. Há muitas em Primeiro Amor, Últimos Ritos.
IME: É verdade, não temos que descrever os seus trabalhos, nem os casamentos e divórcios.
AB: Tiveste outras razões para escrever sobre crianças?
IME: Um escritor de vinte e dois anos poderá sentir-se inibido por falta de experiência útil. A infância e a adolescência eram algo que eu conhecia. Inúmeros escritores, no início da carreira, passam por alguma forma de recapitulação imaginativa. As perceções da infância são de tal modo brilhantes que as acho difíceis de esquecer. Entram em cena se conseguirmos relaxar a nossa atenção o suficiente – não têm que ser relembradas com esforço; estão simplesmente disponíveis.
AB: Um dos aspetos maiores de Expiação é o ponto de vista de Briony nos capítulos iniciais, quando ainda é uma rapariguinha precoce com vontade de escrever e um gosto perigoso pelo melodrama. Sentiste que imaginar o mundo na perspetiva de uma criança foi como regressar a alguma coisa?
IME: Pareceu-me uma imersão muito mais profunda. Não querer chocar os leitores ou cair no grotesco permite uma muito maior liberdade em termos psicológicos. A criação de crianças na ficção é sempre um problema – o ponto de vista restrito pode tornar-se um garrote. Queria conseguir representar a mente de uma criança ao mesmo tempo que usava todos os recursos de uma linguagem adulta complexa – tal como James faz em What Maisie Knew. Não queria as limitações de um vocabulário infantil. Joyce faz isso nas páginas iniciais de A Portrait of the Artist as a Young Man. Todos tentámos imitá-lo. Deixa-nos suspensos do universo sensorial e linguístico de um rapazinho e a magia refulge – e, depois, desaparece, tal como a infância. Joyce avança e a linguagem evolui. A minha forma de ultrapassar esse problema foi fazer de Briony a minha “autora” e permitir-lhe descrever a sua infância do interior, mas na linguagem do romancista maduro.
AB: Até que ponto eras notado antes da publicação de O Jardim de Cimento (The Cement Garden)?
IME: Desproporcionalmente. Em meados dos anos setenta, quando Amis e eu começámos, não havia muitos novos romancistas. Nós atraímos todas as atenções.
AB: Nessa altura, já tinhas desenvolvido uma rotina de escrita regular?
IME: Começava a escrever todos os dias às nove e meia. Herdei a ética de trabalho do meu pai – independentemente do que tivesse feito na noite anterior, levantava-se sempre às sete. Durante os quarenta e oito anos que passou no exército não faltou um só dia.
Nos anos setenta, costumava trabalhar numa mesinha do meu quarto. Escrevia à mão e usava uma caneta de tinta permanente. Depois, na máquina de escrever, fazia um esboço, fazia escolhas e reescrevia. Certa vez, paguei a um profissional para me passar o texto à máquina, mas senti que faltavam coisas que, se tivesse sido eu a escrever, teria modificado. A meio dos anos oitenta, converti-me alegremente aos computadores. O processamento em Word é mais íntimo, mais próximo do pensamento. Se recapitular, a máquina de escrever parece uma obstrução mecânica grosseira. Gosto da natureza provisória do material não impresso que se guarda na memória do computador – como um pensamento não verbalizado. Gosto de poder continuar a trabalhar frases ou passagens enquanto quiser e do modo como esta máquina fiel se recorda de todas as minhas notazinhas e lembretes. Até ao momento, claro, em que o trabalho vai todo ao ar.
AB: O que é, para ti, um dia frutífero?
IME: Procuro escrever cerca de seiscentas palavras por dia e espero escrever mil, pelo menos, se estiver mais entusiasmado.
AB: Na introdução de A Move Abroad, escreves “Há um certo grau de prazer na escrita criativa que não é assimilado, nem remotamente, pela teoria da literatura.” Podes dar-me um exemplo disso?
IME: O prazer está na surpresa. Pode ser algo tão pequeno como um casamento feliz de um nome com um adjectivo. Ou toda uma nova cena, ou o surgir repentino de uma personagem não planeada que simplesmente cresce a partir de uma expressão. A crítica literária, que procura o sentido, nunca consegue abarcar o facto de que algumas coisas se encontram numa dada página apenas porque deram prazer ao escritor. Um escritor cuja manhã decorre sem problemas, cujas frases se estão a constituir bem, experimenta um prazer calmo e privado. Esse prazer liberta uma riqueza de pensamento que pode espoletar novas surpresas. Os escritores anseiam por esses momentos, por essas sessões. Citando a segunda página de Expiação, é o ponto mais elevado no cumprimento de um projeto. Nenhuma outra coisa – uma boa festa de lançamento, muitos leitores, críticas positivas – se lhe aproxima em termos de satisfação.
AB: Na introdução de The Imitation Game escreves acerca da tua inveja relativamente a quem pertence à indústria do cinema com as suas reuniões urgentes, sempre a correr de um lado para o outro em táxis.
IME: Se, durante semanas a fio, te limitares a conviver com fantasmas e a passar da secretária à cama e de volta à secretária, ficas ansioso por algum tipo de trabalho que envolva outras pessoas. Mas, à medida que fui envelhecendo, passei a sentir-me mais reconciliado com os fantasmas e um pouco menos interessado em trabalhar com outras pessoas. (continua)

Tradução de Jorge Simões