sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Discurso de Bob Dylan na entrega do Nobel


A 10 de dezembro foi entregue o Nobel da Literatura a Bob Dylan. Em resultado da impossibilidade da presença do autor, coube a Azita Raji, embaixadora dos Estados Unidos na Suécia, receber o galardão. E ler o discurso de aceitação que Dylan lhe pediu para ler em seu nome e que a seguir transcrevemos.

Boa noite a todos. Estendo as minhas mais calorosas saudações aos membros da Academia Sueca e a todos os distintos convidados hoje aqui presentes.
Lamento não poder comparecer, mas saliento que estou convosco em espírito e que me sinto honrado por receber um prémio tão prestigiado. Nunca imaginei ou antevi alguma vez vir a receber o Prémio Nobel da Literatura. Desde cedo, li e interiorizei os trabalhos de autores que foram dignos desta distinção: Kipling, Shaw, Thomas Mann, Pearl Buck, Albert Camus, Hemingway. Esses gigantes da literatura cujas obras são leccionadas nas escolas, que se encontram presentes em bibliotecas de todo o globo e que são mencionados com reverência sempre me causaram uma forte impressão. O facto de agora me juntar aos nomes de tal lista deixa-me sem palavras.
Ignoro se esses homens e mulheres alguma vez pensaram em serem, eles mesmos, honrados com o Nobel, mas imagino que escrever, em qualquer lugar do mundo, um livro, ou um poema ou um texto dramático poderá albergar, no fundo de si, esse sonho secreto. É possível que se encontre enterrado tão profundamente que nem saibam que lá se encontra.
Se alguém, alguma vez, me tivesse dito que eu tinha hipóteses, por pequenas que fossem, de ganhar o Prémio Nobel, teria que achar que as minhas hipóteses seriam equivalentes às de viajar até à lua. Na verdade, no ano do meu nascimento e ainda durante alguns anos, ninguém no mundo foi considerado suficientemente bom para ganhar este Prémio Nobel. Assim, no mínimo dos mínimos, estou em companhia bastante rara.
Encontrava-me em digressão quando recebi esta notícia surpreendente e tardei mais do que uns meros minutos a processá-la. Comecei a pensar em William Shakespeare, a grande figura literária. Suponho que se considerasse um dramaturgo. Certamente não pensaria estar a escrever literatura. As suas palavras foram escritas para o palco. Com a intenção de serem faladas e não lidas. Quando estava a escrever Hamlet, estou certo de que pensava em várias coisas diferentes: “Quem são os atores certos para estes papéis?”, “Como é que isto deveria ser encenado?”, “Será que quero mesmo que se passe na Dinamarca?”. Sem dúvida que ponderava a sua visão criativa e as suas ambições, mas havia igualmente outras questões mais mundanas a considerar e com que lidar. “Já temos financiamento?”, “Há bons lugares suficientes para os meus patronos?”, “Onde é eu vou arranjar um crânio humano?”. Seria capaz de apostar que a última coisa em que pensava era: “Será que isto é literatura?”
Quando, em jovem, principiei a escrever canções, mesmo quando comecei a ganhar algum renome, as minhas aspirações para essas canções só iam até um certo ponto. Achava que poderiam ser escutadas em cafés ou bares e, mais tarde, talvez em lugares como o Carnegie Hall, o London Palladium. Se sonhasse mesmo alto, talvez imaginasse a gravação de um disco e, depois, ouvir as minhas canções na rádio. Para mim, esse seria o grande prémio. Gravar discos e ouvir as minhas canções na rádio significava que estava chegar a um público vasto e que talvez pudesse continuar a fazer o que decidira fazer.
Bom, há já muito tempo tenho vindo a fazer o que decidi fazer. Gravei dúzias de discos e apresentei-os em milhares de concertos por todo o mundo. Mas são as minhas canções que se encontram no cerne vital de quase tudo o que faço. Parecem ter encontrado um lugar nas vidas de muita gente de muitas culturas diferentes e sinto-me grato por isso.
Há, no entanto, algo de que devo falar. Enquanto artista de palco, toquei diante de 50 mil pessoas e diante de 50 pessoas e posso dizer-vos que é mais difícil tocar para 50 pessoas. 50 mil pessoas formam um corpo singular, não é assim com 50. Cada pessoa possui uma identidade individual e separada, um mundo só seu. Podem ver as coisas com maior clareza. A nossa honestidade, e a forma como se relaciona com a profundidade do nosso talento, é posta à prova. Não posso deixar de pensar até que ponto o Comité Nobel é pequeno.
Mas, tal como Shakespeare, também eu me encontro frequentemente ocupado com a procura da minha criatividade, tendo que lidar com todos os aspetos da vida do dia-a-dia. “Quem são os melhores músicos para estas canções?”, “Será que este é o melhor estúdio para esta gravação?”, “Esta canção está na tonalidade certa?”. Algumas coisas nunca mudam, nem mesmo em 400 anos.
Nunca, mas nunca, tive tempo para me interrogar: “As minhas canções são literatura?”
Assim, agradeço à Academia Sueca por ter usado o seu tempo na consideração dessa interrogação e, enfim, por lhe ter dado uma resposta maravilhosa.

Desejos do melhor para todos,

Bob Dylan

Tradução de Jorge Simões

© The Nobel Foundation 2016

O texto do discurso pode ser publicado livremente, no original ou noutra língua, durante um prazo de duas semanas a contar de 10 de dezembro. A partir daí, deverá ser pedida uma autorização à Fundação Nobel. A menção do copyright deverá surgir em qualquer caso. Se o texto em português, tal como surge acima, for publicado em algum media, dever-se-á incluir o nome do tradutor.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Voz das Línguas arranca na Biblioteca


A primeira eliminatória do concurso de Leitura Voz das Línguas, realizada, no passado dia 30 de novembro, na biblioteca da ESCM, garantiu casa cheia e permitiu apurar os primeiros vencedores para a final.
Eis a lista dos apurados, nas modalidades de Português e de Língua Estrangeira, a quem, desde já , agradecemos a participação e o esforço:

Português - Mafalda Silva, do 7º B
                   Diogo Duarte, do 8º B
                   Catarina Marques, do 9º C
                   Andreia Piçarra, do 10º G
                   Francisca Ferreira Dias, do 11º F
                   Sara Silva, do 12º D

Língua Estrangeira - Diogo Martins, do 7º I
                                  Diogo Duarte, do 8º B
                                  Daniel Pereira, do 9º D
                                  Beatriz Paiva, do 10º G
                                  Ana Fernandes, do 12º A

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Encontro com Hemingway - 2


George Plimpton: Acha que um novo escritor poderia beneficiar com trabalho jornalístico? Até que ponto o ajudou o tempo que trabalhou no Kansas City Star?
Hemingway: No Star tínhamos que aprender a escrever uma simples frase declarativa. Isso é uma ajuda para quem quer que seja. O trabalho jornalístico não prejudica o escritor recém-chegado e poderá constituir um apoio se se retirar a tempo. Este é um dos mais velhos lugares-comuns e peço desculpa por isso. Mas quando faz perguntas velhas e gastas, acaba por receber respostas velhas e gastas.
George Plimpton: Certa vez, escreveu na Transatlantic Review que a única razão para se escrever texto jornalístico era ser-se bem pago. Afirmou: “E quando destruímos as nossas coisas de valor ao escrevermos sobre elas, pretendemos lucrar com isso”. Pensa na escrita como uma espécie de autodestruição?
Hemingway: Não me recordo de alguma vez ter escrito isso. Mas parece-me suficientemente tolo e violento que o tenha dito para evitar enervar-me e fazer uma declaração sensata. Com certeza que não penso na escrita como uma espécie de autodestruição, embora o jornalismo, depois de se chegar a um dado ponto, possa constituir uma autodestruição diária para o escritor sério e criativo.
George Plimpton: Acha que o estímulo intelectual da companhia de outros escritores é importante para um autor?
Hemingway: Sem dúvida.
George Plimpton: Na Paris dos anos vinte tinha alguma sensação de pertença a um grupo com outros escritores e artistas?
Hemingway: Não. Não havia essa sensação. Respeitávamo-nos mutuamente. Respeitava muitos pintores, alguns da minha idade, outros mais velhos – Gris, Picasso, Braque, Monet (que ainda estava vivo nesse tempo) – e uns poucos escritores: Joyce, Ezra, Stein…
George Plimpton: Quando escreve, sucede-lhe ser influenciado pelo que estiver a ler nessa altura?
Hemingway: Não desde o tempo em que Joyce estava a escrever Ulysses. A sua influência não foi direta. Mas naqueles dias em que as palavras nos eram barradas e tínhamos que lutar por cada palavra, a influência do seu trabalho foi o que mudou tudo e tornou possível rompermos com as restrições.
George Plimpton: Pode aprender-se com os escritores? Ainda ontem me contou que Joyce não suportava falar sobre a escrita.
Hemingway: Quando estamos com gente da nossa área, é normal falarmos sobre os livros de outros escritores. Quanto melhores forem esses escritores, menos falarão acerca dos seus próprios livros. Joyce era um excelente escritor e só explicava aquilo que fazia aos idiotas. Outros escritores que ele respeitava seriam capazes de o entender simplesmente através da leitura.
George Plimpton: Nos últimos anos, parece ter evitado a companhia de outros escritores. Porquê?
Hemingway: Isso é uma coisa mais complicada. Quanto mais escrevermos, mais isolados acabamos por ficar. A maioria dos nossos amigos, melhores e mais antigos, morrem. Outros mudam-se. Só raramente os encontramos, mas escrevemos e temos basicamente o mesmo tipo de contacto com eles como nos velhos tempos em que nos encontrávamos em cafés. Trocamos correspondência cómica, por vezes divertidamente obscena e irresponsável, e é quase tão bom como conversar. Mas estamos mais isolados porque é assim que devemos trabalhar e porque o tempo para o fazer é menor e se o desperdiçarmos sentimos que cometemos um pecado para o qual não há perdão.
George Plimpton: E a influência de alguns deles – os seus contemporâneos – no seu trabalho? Qual foi a contribuição de Gertrude Stein, se alguma? Ou de Ezra Pound? Ou de Max Perkins?
Hemingway: Lamento, mas não sou bom nestas homenagens fúnebres. Há médicos-legistas, literários e não-literários, que lidam com essas coisas. A menina Stein escreveu bastante e com considerável inexatidão sobre a sua influência no meu trabalho. Teve que o fazer depois de ter aprendido a escrever diálogos com um livro chamado O Sol Nasce Sempre (Fiesta). Eu gostava muito dela e achei esplêndido que tivesse aprendido a escrever diálogos. Para mim, aprender com os outros, vivos e mortos, não era nada de novo, e não fazia ideia de que a Gertrude se sentiria tão afetada. Ela já escrevia muito bem de outras formas. Ezra era extremamente inteligente quando conhecia uma temática. Este tipo de conversa não o aborrece? Eu acho este tipo de mexerico literário, enquanto lavamos a roupa suja de há trinta e cinco anos, repelente. Teria sido diferente se se tivesse procurado contar toda a verdade. Isso teria algum valor. Aqui, torna-se melhor e mais simples agradecer à Gertrude tudo o que aprendi com ela sobre as relações abstratas das palavras, dizer como gostava dela, reafirmar a minha lealdade a Ezra enquanto grande poeta e amigo leal e salientar que gostava tanto de Max Perkins que nunca consegui aceitar a sua morte. Ele nunca me pediu para alterar nada que tivesse escrito, a não ser retirar algumas palavras que não eram, nesse tempo, publicáveis. Deixavam-se espaços em branco e qualquer um que conhecesse as palavras saberia que estavam lá. Para mim, não era um editor. Era um amigo sábio e um companheiro maravilhoso. Gostava do modo como usava o chapéu e da estranha forma como movimentava os lábios.
George Plimpton: Quem diria serem os seus antepassados literários – aqueles com quem aprendeu mais?
Hemingway: Mark Twain, Flaubert, Stendhal, Bach, Turgenev, Tolstoy, Dostoyevsky, Chekhov, Andrew Marvell, John Donne, Maupassant, o bom velho Kipling, Thoreau, Captain Marryat, Shakespeare, Mozart, Quevedo, Dante, Virgílio, Tintoretto, Jerónimo Bosch, Brueghel, Patinir, Goya, Giotto, Cézanne, Van Gogh, Gauguin, San Juan de la Cruz, Góngora – iria demorar um dia inteiro a lembrar-me de todos. E, então, iria parecer que estava a tentar demonstrar uma erudição que não tinha em vez de me lembrar todos os que influenciaram a minha vida e o meu trabalho. Essa não é uma velha pergunta banal. É uma pergunta muito boa, mas solene e que exige um exame de consciência. Incluí pintores porque aprendo tanto com os pintores como com os escritores. Como? Demoraria mais um dia a explicar. Creio que o que aprendemos com os compositores e com o estudo da harmonia e do contraponto deve ser óbvio.
George Plimpton: Alguma vez chegou a tocar um instrumento?
Hemingway: Tocava violoncelo. A minha mãe deixou-me fora da escola durante um ano para que pudesse aprender música e contraponto. Ela achava-me capaz, mas eu não tinha qualquer talento. Tocávamos música de câmara – vinha alguém de fora para o violino; a minha irmã tocava viola de arco e a minha mãe piano. O violoncelo – tocava-o pior do que toda a gente à face do planeta. Claro que nesse ano também fazia outra coisas.
George Plimpton: Relê os autores da sua lista? Twain, por exemplo?
Hemingway: Temos que pausar durante uns dois ou três anos com o Twain. Lembramo-nos bem demais. Todos os anos leio algum Shakespeare, o Rei Lear sempre. Alegra-me.
George Plimpton: Então, a leitura é um prazer e uma ocupação constante.
Hemingway: Leio sempre – tantos livros quantos houver. Controlo-me para ter sempre que ler. (continua)

Tradução de Jorge Simões

domingo, 20 de novembro de 2016

Eça atribui prémio literário


Está aberto, até 1 de fevereiro de 2017, o Prémio Literário Fundação Eça de Queiroz, no valor de cinco mil euros. Instituído pela Fundação Eça de Queiroz e pela Câmara Municipal de Baião, com coordenação e edição a cargo da Editorial Presença, o prémio distingue um romance inédito de um autor de língua portuguesa.
Se pensas que tens aqui a oportunidade de te lançares no mundo da escrita, consulta o regulamento completo aqui .

domingo, 30 de outubro de 2016

Encontro com Hemingway - 1


Apresentamos, a partir de hoje e de forma sequenciada, uma entrevista com o celebrado autor Ernest Hemingway, ganhador do Nobel da Literatura em 1954 e uma das mais importantes figuras da escrita criativa do século XX. O encontro data de 1958 e tem como entrevistador George Plimpton.

George Plimpton: Sente que as horas que gasta no processo da escrita são agradáveis?
Hemingway: Muito.
George Plimpton: Poder-nos-ia falar sobre esse processo? Quando trabalha? Mantém horários rígidos?
Hemingway: Quando trabalho num livro ou numa história, escrevo todas as manhãs, logo que possível, após o raiar do dia. Não há ninguém que nos perturbe e está fresco ou frio e trabalhamos e aquecemos à medida que escrevemos. Lemos o que escrevemos e, como pausamos sempre num ponto em que sabemos o que vai acontecer a seguir, retomamos a partir daí. Escrevemos até chegarmos a um ponto em que ainda temos inspiração e sabemos como a história vai continuar e paramos e procuramos viver até ao dia seguinte, quando retomamos o trabalho. Podemos, por exemplo, ter começado às seis da manhã e podemos continuar até ao meio-dia ou mesmo antes disso. Quando paramos, sentimo-nos tão vazios, ou simultaneamente nunca vazios mas no processo de ganhar novas energias, como quando fizemos amor com alguém que amamos. Nada nos pode magoar, nada de mau pode acontecer, nada tem significado até ao dia seguinte, quando retomamos o trabalho. Esperar pelo dia seguinte é a parte difícil.
George Plimpton: Consegue esquecer os seus projetos quando está longe da máquina de escrever?
Hemingway: Claro. Mas trata-se de algo que exige disciplina e trata-se de uma disciplina adquirida. Tem que ser.
George Plimpton: Faz alguma reescrita enquanto relê o que escreveu no dia anterior? Ou trata-se de algo que surge mais tarde, quando tudo está terminado?
Hemingway: Todos os dias reescrevo o que escrevi no dia anterior. Quando termino, naturalmente que avanço. Posso voltar a corrigir e a reescrever quando outra pessoa passa o texto à máquina e o vemos escrito dessa maneira. A última oportunidade são as provas. Sinto-me grato por essas diferentes oportunidades.
George Plimpton: Até que ponto reescreve?
Hemingway: Depende. Reescrevi o final de Adeus às Armas, a última página, trinta e nove vezes antes de me dar por satisfeito.
George Plimpton: Foi por causa de algum problema técnico? O que é que o empatou?
Hemingway: Arranjar as palavras certas.
George Plimpton: É a reescrita que aviva a inspiração?
Hemingway: A releitura coloca-nos sempre numa posição em que temos que avançar, sabendo que é o melhor que conseguimos fazer naquele momento. Há sempre inspiração algures.
George Plimpton: Mas há momentos em que a inspiração simplesmente está ausente?
Hemingway: Naturalmente. Mas se tivermos parado num momento em que sabemos o que se segue, podemos avançar. Desde que consigamos começar, tudo está bem. A inspiração acaba por chegar.
George Plimpton: Thornton Wilder fala-nos de técnicas mnemónicas que ajudam o escritor a avançar. Ele diz que certa vez lhe contou que aguçava vinte lápis.
Hemingway: Não acho eu alguma vez tenha tido vinte lápis em simultâneo. Se gastar sete lápis número 2, terei trabalhado bem.
George Plimpton: Em que lugares gostou mais de trabalhar? O hotel Ambos Mundos deve ter sido um deles, tendo em conta o número de livros que lá escreveu. Ou aquilo que o rodeia tem pouca influência no que escreve?
Hemingway: O Ambos Mundos, em Havana, era um ótimo local para trabalhar. O Finca é esplêndido, ou era. Mas trabalhei bem onde quer que tenha sido. Ou seja, consegui trabalhar o melhor que pude em circunstâncias variadas. O telefone e os visitantes é que destroem o trabalho.
George Plimpton: A estabilidade emocional é importante para se trabalhar bem? Certa vez, contou-me que só conseguia escrever bem se estivesse apaixonado. Poderia falar-nos sobre isso?
Hemingway: Que pergunta! Mas parabéns por tentar. Posso escrever em qualquer altura em que as pessoas não me interrompam. Ou se conseguirmos ser antipáticos. Mas sem dúvida que a melhor escrita é quando estamos apaixonados. Se não se importar, preferiria não desenvolver.
George Plimpton: E a estabilidade financeira? Trata-se de algo que pode prejudicar a boa escrita?
Hemingway: Se chegar suficientemente cedo e amarmos tanto a vida como o nosso trabalho, é preciso ter uma personalidade muito forte para se resistir às tentações. Mas se a escrita se tiver tornado o nosso principal vício e o nosso maior prazer, só a morte a poderá parar. Aí, a estabilidade financeira é uma grande ajuda porque não perdemos tempo com preocupações desse tipo. As preocupações destroem a capacidade de escrever. Problemas de saúde são maus porque geram preocupações que nos atacam o subconsciente e destroem as nossas reservas.
George Plimpton: Consegue lembrar-se do momento exato em que decidiu ser escritor?
Hemingway: Não, sempre quis ser escritor.
George Plimpton: Philip Young, na biografia que escreveu sobre si, sugere que o choque traumático do ferimento de granada que sofreu em 1918, poderá ter tido uma forte influência em si enquanto escritor. Lembro-me de que em Madrid falou um pouco acerca dessa tese, tendo-a descartado e acrescentando que achava que o equipamento do artista não era uma característica adquirida, mas sim herdada, no sentido Mendeliano.
Hemingway: É evidente que nesse ano, em Madrid, os meus pensamentos estavam um pouco conturbados. A única coisa de bom poderá ter sido o facto de ter falado muito pouco sobre o livro do senhor Young e sobre a sua teoria literária do trauma. Talvez as duas concussões e uma fratura craniana, nesse ano, me tenham levado a fazer declarações irresponsáveis. Recordo-me de lhe ter dito que acreditava que a imaginação poderia resultar de uma experiência racial herdada. Parece bem enquanto conversa de café pós-concussão, mas é tudo. Então, até ao próximo trauma libertador, fiquemos por aí. Pode ser? Mas obrigado por não mencionar os nomes de alguns parentes que eu possa ter implicado. A parte divertida da conversa é a exploração, mas grande parte dela e tudo que for irresponsável não deve ser escrito. É que a partir do momento em que alguém a escreve temos que a justificar. Podemos ter dito algo para confirmar se acreditávamos ou não no que estávamos a dizer. Quanto ao que disse, os efeitos dos ferimentos variam muito. Ferimentos simples e sem grandes consequências não têm propriamente relevância. Por vezes, dão-nos confiança. Ferimentos que causam problemas sérios aos ossos e aos nervos não são bons para os escritores nem para ninguém.
George Plimpton: Qual diria ser a melhor prática intelectual para quem quiser tornar-se escritor?
Hemingway: Digamos que deveria sair de casa e enforcar-se por ter descoberto que escrever é incrivelmente difícil. De seguida, dever-se-ia mutilar e ver-se forçado por si mesmo a escrever o melhor que conseguisse durante o resto da sua vida. Pelo menos, teria a história do enforcamento como ponto de partida.
George Plimpton: E as pessoas que ingressaram numa carreira académica? Acha que o grande número de escritores com lugares no ensino representa um compromisso para as suas carreiras literárias?
Hemingway: Depende do que pretendemos dizer com compromisso. Estamos a falar de uma mulher que se viu comprometida? Ou do compromisso do homem do estado? Ou do compromisso com o nosso açougueiro ou alfaiate de lhe pagar um pouco mais, só que mais tarde? Um escritor que consegue escrever e ensinar em simultâneo deve fazê-lo. Muitos escritores competentes provaram que é possível. Eu sei que não seria capaz e admiro os que o conseguiram. Ainda assim, penso que talvez a vida académica possa colocar um ponto final nas experiências com o mundo exterior e que isso poderá, eventualmente, limitar o conhecimento do mundo. Mas é verdade que o conhecimento exige maior responsabilidade do escritor e torna a escrita mais difícil. Procurar escrever algo perene é um trabalho a tempo inteiro, mesmo se apenas algumas horas no dia são ocupadas com a escrita em si. Podemos comparar um escritor a um poço. Há tantos tipos de poços como escritores. O importante é que o poço tenha boa água e é melhor retirar uma quantidade de água regularmente do que esvaziar o poço e esperar que se volte a encher. Sei que me estou a afastar da pergunta, mas a pergunta não foi muito interessante. (continua)

Tradução de Jorge Simões

domingo, 16 de outubro de 2016

Mês Internacional das Bibliotecas Escolares


Este ano, o Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, subordinado ao tema Aprende a Descodificar o teu Mundo, iniciou-se, na nossa biblioteca, com um programa de visitas para todas as turmas dos 7º e 8º anos.
Recebemos os alunos para os familiarizarmos com o novo espaço de que podem usufruir, para lhes darmos uma pequena formação de utilizadores e para os iniciarmos na interessante tarefa de pesquisadores de informação.
Quisemos, também, cativá-los para a importância dos livros na vida de todos e oferecemos-lhes a leitura de um pequeno conto de Sophie Carquain, O Encontro com a Dama das Histórias
Esperamos que, na sequência destas atividades, os nossos alunos sintam que estaremos sempre disponíveis para os ajudar e acompanhar.

Nobel da Literatura para Dylan


Aos 75 anos de idade, Bob Dylan foi agraciado com o Nobel da Literatura. Trata-se de uma escolha polémica, defendida, por um lado, pelos que consideram vir na tradição do trabalho de autores como William Shakespeare, e atacada, por outro, por quem salienta tratar-se de um músico e não de um escritor no sentido mais clássico do termo. A questão-base é que the times they are a-changin'
A verdade é que, bem feitas as contas, Dylan poderá ter mais merecimento do que alguns vencedores anteriores como o iconoclasticamente desesperado Camilo José Cela ou o meramente político Alexander Soljenitsin. Até ao momento, o autor ainda não se pronunciou quanto ao prémio. Na Biblioteca do Castêlo, esperamos sinceramente que não siga o exemplo de Sartre que, num gesto datado de snobismo, recusou, em 1964, a honra proporcionada pelo Comité.


Dylan conta, naturalmente, com inúmeras biografias. Para quem quiser conhecer melhor a personagem, em lugar de recomendarmos Chronicles, que se tornou um lugar-comum em termos de recomendação, chamamos a atenção para Behind the Shades - The 20th Anniversary Edition, de Clinton Heylin, provavelmente a obra mais completa até hoje escrita sobre o longo percurso do autor. Editado em 2011 pela Faber & Faber, conta com 931 páginas de uma investigação aturada e não faz favores a ninguém. A ler.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Um conto de Machado de Assis


Nascido no Rio de Janeiro em 1839 e falecido na mesma cidade em 1908, Joaquim Maria Machado de Assis foi o introdutor do Realismo no Brasil e um dos mais importantes autores daquele país, com nove romances e peças teatrais, duzentos contos, cinco coletâneas de poemas e sonetos e mais de seiscentas crónicas publicados. Foi, também, em 1897, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. 
Trazemos hoje a este espaço um conto completo do autor. Esperamos que gostem.

CONTO ALEXANDRINO 

Capítulo I  No mar 

— O quê, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro. — Em primeiro lugar, Pítias, tu omites uma condição: — é que o rato deve expirar debaixo do escalpelo, para que o sangue traga o seu princípio. Essa condição é essencial. Em segundo lugar, uma vez que me apontas o exemplo do rato, fica sabendo que já fiz com ele uma experiência, e cheguei a produzir um ladrão... — Ladrão autêntico? — Levou-me o manto, ao cabo de trinta dias, mas deixou-me a maior alegria do mundo: — a realidade da minha doutrina. Que perdi eu? um pouco de tecido grosso; e que lucrou o universo? a verdade imortal. Sim, meu caro Pítias; esta é a eterna verdade. Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia... — Os do sábio na coruja, interrompeu Pítias sorrindo. — Não; a coruja é apenas um emblema; mas a aranha, se pudéssemos transferi-la a um homem, daria a esse homem os rudimentos da geometria e o sentimento musical. Com um bando de cegonhas, andorinhas ou grous, faço-te de um caseiro um viajeiro. O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação no dos pavões... Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe. Esta é a minha filosofia recente; esta é a que vou divulgar na corte do grande Ptolomeu. Pítias sacudiu a cabeça, e fixou os olhos no mar. O navio singrava, em direitura a Alexandria, com essa carga preciosa de dois filósofos, que iam levar àquele regaço do saber os frutos da razão esclarecida. Eram amigos, viúvos e qüinquagenários. Cultivavam especialmente a metafísica, mas conheciam a física, a química, a medicina e a música; um deles, Stroibus, chegara a ser excelente anatomista, tendo lido muitas vezes os tratados do mestre Herófilo. Chipre era a pátria de ambos; mas, tão certo é que ninguém é profeta em sua terra, Chipre não dava o merecido respeito aos dois filósofos. Ao contrário, desdenhava-os; os garotos tocavam ao extremo de rir deles. Não foi esse, entretanto, o motivo que os levou a deixar a pátria. Um dia, Pítias, voltando de uma viagem, propôs ao amigo irem para Alexandria, onde as artes e as ciências eram grandemente honradas. Stroibus aderiu, e embarcaram. Só agora, depois de embarcados, é que o inventor da nova doutrina expô-la ao amigo, com todas as suas recentes cogitações e experiências. — Está feito, disse Pítias, levantando a cabeça, não afirmo nem nego nada. Vou estudar a doutrina, e se a achar verdadeira, proponho-me a desenvolvê-la e divulgá-la. — Viva Hélios! exclamou Stroibus. Posso contar que és meu discípulo.

Capítulo II Experiência

Os garotos alexandrinos não trataram os dois sábios com o escárnio dos garotos cipriotas. A terra era grave como a íbis pousada numa só pata, pensativa como a esfinge, circunspecta como as múmias, dura como as pirâmides; não tinha tempo nem maneira de rir. Cidade e corte, que desde muito tinham notícia dos nossos dois amigos, fizeram-lhes um recebimento régio, mostraram conhecer os seus escritos, discutiram as suas idéias, mandaram-lhes muitos presentes, papiros, crocodilos, zebras, púrpuras. Eles, porém, recusaram tudo, com simplicidade, dizendo que a filosofia bastava ao filósofo, e que o supérfluo era um dissolvente. Tão nobre resposta encheu de admiração tanto aos sábios como aos principais e à mesma plebe. E aliás, diziam os mais sagazes, que outra coisa se podia esperar de dois homens tão sublimes, que em seus magníficos tratados... — Temos coisa melhor do que esses tratados, interrompia Stroibus. Trago uma doutrina, que, em pouco, vai dominar o universo; cuido nada menos que em reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes. — Não é esse o ofício dos deuses? objetava um. — Eu violei o segredo dos deuses, acudia Stroibus. O homem é a sintaxe da natureza, eu descobri as leis da gramática divina... — Explica-te. — Mais tarde; deixa-me experimentar primeiro. Quando minha doutrina estiver completa, divulgá-la-ei como a maior riqueza que os homens jamais poderão receber de um homem. Imaginem a expectação pública e a curiosidade dos outros filósofos, embora
incrédulos de que a verdade recente viesse aposentar as que eles mesmos possuíam. Entretanto, esperavam todos. Os dois hóspedes eram apontados na rua até pelas crianças. Um filho meditava trocar a avareza do pai, um pai a prodigalidade do filho, uma dama a frieza de um varão, um varão os desvarios de uma dama, porque o Egito, desde os Faraós até aos Lágides, era a terra de Putifar, da mulher de Putifar, da capa de José, e do resto. Stroibus tornou-se a esperança da cidade e do mundo. Pítias, tendo estudado a doutrina, foi ter com Stroibus, e disse-lhe: — Metafisicamente, a tua doutrina é um despropósito; mas estou pronto a admitir uma experiência, contando que seja decisiva. Para isto, meu caro Stroibus, há só um meio. Tu e eu, tanto pelo cultivo de razão como pela rigidez do caráter, somos o que há mais oposto ao vício do furto. Pois bem, se conseguires incutir-nos esse vício, não será preciso mais; se não conseguires nada (e pode crê-lo, porque é um absurdo) recuarás de semelhante doutrina, e tornarás às nossas velhas meditações. Stroibus aceitou a proposta. — O meu sacrifício é o mais penoso, disse ele, pois estou certo do resultado; mas que não merece a verdade? A verdade é imortal; o homem é um breve momento... Os ratos egípcios, se pudessem saber de um tal acordo, teriam imitado os primitivos hebreus, aceitando a fuga para o deserto, antes do que a nova filosofia. E podemos crer que seria um desastre. A ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas; e desde que a ignorância dos ratos, a sua fraqueza, a superioridade mental e física dos dois filósofos eram outras tantas vantagens na experiência que ia começar, cumpria não perder tão boa ocasião de saber se efetivamente o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído pelas várias espécies de animais, e se era possível transmiti-lo. Stroibus engaiolava os ratos; depois, um a um, ia-os sujeitando ao ferro. Primeiro, atava uma tira de pano no focinho do paciente; em seguida, os pés, finalmente, cingia com um cordel as pernas e o pescoço do animal à tábua da operação. Isto feito, dava o primeiro talho no peito, com vagar, e com vagar ia enterrando o ferro até tocar o coração, porque era opinião dele que a morte instantânea corrompia o sangue e retirava-lhe o princípio. Hábil anatomista, operava com uma firmeza digna do propósito científico. Outro, menos destro, interromperia muita vez a tarefa, porque as contorções de dor e de agonia tornavam difícil o meneio do escalpelo; mas essa era justamente a superioridade de Stroibus: tinha o pulso magistral e prático. Ao lado dele, Pítias aparava o sangue e ajudava a obra, já contendo os movimentos convulsivos do paciente, já espiando-lhe nos olhos o progresso da agonia. As observações que ambos faziam eram notadas em folhas de papiro; e assim ganhava a ciência de duas maneiras. Às vezes, por divergência de apreciação, eram obrigados a escalpelar maior número de ratos do que o necessário; mas não perdiam com isso, porque o sangue dos excedentes era conservado e ingerido depois. Um só desses casos mostrará a consciência com que eles procediam. Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor até chegar ao azul claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de canela como o tom final da morte. Estavam na última operação do dia; mas o ponto valia a pena, e, não obstante o cansaço, fizeram sucessivamente dezenove experiências sem resultado definitivo; Pítias insistia pela cor azul, e Stroibus pela cor de canela. O vigésimo rato esteve prestes a pô-los de acordo, mas Stroibus advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a e escalpelaram mais vinte e cinco. Destes, o primeiro ainda os deixou em dúvida; mas os outros vinte e quatro provaram-lhes que a cor final não era canela nem azul, mas um lírio roxo, tirando a claro. A descrição exagerada das experimentações deu rebate à porção sentimental da cidade, e excitou a loqüela de alguns sofistas; mas o grave Stroibus (com brandura, para não agravar uma disposição própria da alma humana) respondeu que a verdade valia todos os ratos do universo, e não só os ratos, como os pavões, as cabras, os cães, os rouxinóis, etc.; que, em relação aos ratos, além de ganhar a ciência, ganhava a cidade, vendo diminuída a praga de um animal tão daninho; e, se a mesma consideração não se dava com outros animais, como, por exemplo, as rolas e os cães, que eles iam escalpelar daí a tempos, nem por isso os direitos da verdade eram menos imprescritíveis. A natureza não há de ser só a mesa de jantar, concluía em forma de aforismo, mas também a mesa da ciência. E continuavam a extrair o sangue e a bebê-lo. Não o bebiam puro, mas diluído em um cozimento de cinamomo, suco de acácia e bálsamo, que lhe tirava todo o sabor primitivo. As doses eram diárias e diminutas; tinham, portanto, de aguardar um longo prazo antes de produzido o efeito. Pítias, impaciente e incrédulo, mofava do amigo. — Então? nada? — Espera, dizia o outro, espera. Não se incute um vício como se cose um par de sandálias.

Capítulo III Vitória

Enfim, venceu Stroibus! A experiência provou a doutrina. E Pítias foi o primeiro que deu mostras da realidade do efeito, atribuindo-se umas três idéias ouvidas ao próprio Stroibus; este, em compensação, furtou-lhe quatro comparações e uma teoria dos ventos. Nada mais científico do que essas estréias. As idéias alheias, por isso mesmo que não foram compradas na esquina, trazem um certo ar comum; e é muito natural começar por elas antes de passar aos livros emprestados, às galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc. A própria denominação de plágio é um indício de que os homens compreendem a dificuldade de confundir esse embrião da ladroeira com a ladroeira formal. Duro é dizê-lo; mas a verdade é que eles deitaram ao Nilo a bagagem metafísica, e dentro de pouco estavam larápios acabados. Concertavam-se de véspera, e iam aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas dracmas. Como furtassem sem estrépito, ninguém dava por eles; mas, ainda mesmo que os suspeitassem, como fazê-lo crer aos outros? Já então Ptolomeu coligira na biblioteca muitas riquezas e raridades; e, porque conviesse ordená-las, designou para isso cinco gramáticos e cinco filósofos, entre estes os nossos dois amigos. Estes últimos trabalharam com singular ardor, sendo os primeiros que entravam e os últimos que saíam, e ficando ali muitas noites, ao clarão da lâmpada, decifrando, coligindo, classificando. Ptolomeu, entusiasmado, meditava para eles os mais altos destinos. Ao cabo de algum tempo, começaram a notar-se faltas graves: — um exemplar de Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2º e o 3º livros da República de Platão, etc., etc. A autoridade pôs-se à espreita; mas a esperteza do rato, transferida a um organismo superior, era naturalmente maior, e os dois ilustres gatunos zombavam de espias e guardas. Chegaram ao ponto de estabelecer este preceito filosófico de não sair dali com as mãos vazias; traziam sempre alguma coisa, uma fábula, quando menos. Enfim, estando a sair um navio para Chipre, pediram licença a Ptolomeu, com promessa de voltar, coseram os livros dentro de couros de hipopótamo, puseram-lhes rótulos falsos, e trataram de fugir. Mas a inveja de outros filósofos não dormia; deu rebate às suspeitas dos magistrados, e descobriu-se o roubo. Stroibus e Pítias foram tidos por aventureiros, mascarados com os nomes daqueles dois varões ilustres; Ptolomeu entregou-os à justiça com ordem de os passar logo ao carrasco. Foi então que interveio Herófilo, inventor da anatomia.

Capítulo IV Plus Ultra!


— Senhor, disse ele a Ptolomeu, tenho-me limitado até agora escalpelar cadáveres. Mas o cadáver dá-me a estrutura, não me dá a vida; dá-me os órgãos, não me dá as funções. Eu preciso das funções e da vida. — Que me dizes? redargüiu Ptolomeu. Queres estripar os ratos de Stroibus? — Não, senhor; não quero estripar os ratos. — Os cães? os gansos? as lebres?... — Nada; peço alguns homens vivos. — Vivos? não é possível... — Vou demonstrar que não só é possível, mas até legítimo e necessário. As prisões egípcias estão cheias de criminosos, e os criminosos ocupam, na escala humana, um grau muito inferior. Já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer homens, porque a razão e a virtude, que são os dois principais característicos humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral. Além disso, uma vez que têm de expiar com a morte os seus crimes, não é justo que prestem algum serviço à verdade e à ciência? A verdade é imortal; ela vale não só todos os ratos, como todos os delinqüentes do universo. Ptolomeu achou o raciocínio exato, e ordenou que os criminosos fossem entregues a Herófilo e seus discípulos. O grande anatomista agradeceu tão insigne obséquio, e começou a escalpelar os réus. Grande foi o assombro do povo; mas, salvo alguns pedidos verbais, não houve nenhuma manifestação contra a medida. Herófilo repetia o que dissera a Ptolomeu, acrescentando que a sujeição dos réus à experiência anatômica era até um modo indireto de servir à moral, visto que o terror do escalpelo impediria a prática de muitos crimes. Nenhum dos criminosos, ao deixar a prisão, suspeitava o destino científico que o esperava. Saíam um por um; às vezes dois a dois, ou três a três. Muitos deles, estendidos e atados à mesa da operação, não chegavam a desconfiar nada; imaginavam que era um novo gênero de execução sumária. Só quando os anatomistas definiam o objeto do estudo do dia, alçavam os ferros e davam os primeiros talhos, é que os desgraçados adquiriam a consciência da situação. Os que se lembravam de ter visto as experiências dos ratos, padeciam em dobro, porque a imaginação juntava à dor presente o espetáculo passado. Para conciliar os interesses da ciência com os impulsos da piedade, os réus não eram escalpelados à vista uns dos outros, mas sucessivamente. Quando vinham aos dois ou aos três, não ficavam em lugar donde os que esperavam pudessem ouvir os gritos do paciente, embora os gritos fossem muitas vezes abafados por meio de aparelhos; mas se eram abafados, não eram suprimidos, e em certos casos, o próprio objeto da experiência exigia que a emissão da voz fosse franca. Às vezes as operações eram simultâneas; mas então faziam-se em lugares distanciados. Tinham sido escalpelados cerca de cinqüenta réus, quando chegou a vez de Stroibus e Pítias. Vieram buscá-los; eles supuseram que era para a morte judiciária, e encomendaram-se aos deuses. De caminho, furtaram uns figos, e explicaram o caso alegando que era um impulso da fome; adiante, porém, subtraíram uma flauta, e essa outra ação não a puderam explicar satisfatoriamente. Todavia, a astúcia do larápio é infinita, e Stroibus, para justificar a ação, tentou extrair algumas notas do instrumento, enchendo de compaixão as pessoas que os viam passar, e não ignoravam a sorte que iam ter. A notícia desses dois novos delitos foi narrada por Herófilo, e abalou a todos os seus discípulos. — Realmente, disse o mestre, é um caso extraordinário, um caso lindíssimo. Antes do principal, examinemos aqui o outro ponto... O ponto era saber se o nervo do latrocínio residia na palma da mão ou na extremidade dos dedos; problema esse sugerido por um dos discípulos. Stroibus foi o primeiro sujeito à operação. Compreendeu tudo, desde que entrou na sala; e, como a natureza humana tem uma parte ínfima, pediu-lhes humildemente que poupassem a vida a um filósofo. Mas Herófilo, com um grande poder de dialética, disse-lhe mais ou menos isto: — Ou és um aventureiro ou o verdadeiro Stroibus; no primeiro caso, tens aqui o único meio para resgatar o crime de iludir a um príncipe esclarecido, presta-te ao escalpelo; no segundo caso, não deves ignorar que a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em comparação com o entendimento. Dito isto, começaram pela experiência das mãos, que produziu ótimos resultados, coligidos em livros, que se perderam com a queda dos Ptolomeus. Também as mãos de Pítias foram rasgadas e minuciosamente examinadas. Os infelizes berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos escalpelados antes deles. Diziam os alexandrinos que os ratos celebraram esse caso aflitivo e doloroso com danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados de igual destino, e outrossim, que nenhum dos convidados aceitou o convite, por sugestão de um cachorro, que lhes disse melancolicamente: — "Século virá em que a mesma coisa nos aconteça". Ao que retorquiu um rato: "Mas até lá, riamos!"

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Encontro com Ian McEwan - 5


Adam Begley: Como nasceu Amesterdão?
Ian McEwan: Desenvolveu-se a partir de uma piada recorrente que tinha com o meu velho amigo e companheiro de hiking, Ray Dolan. Especulávamos despreocupadamente sobre um acordo que poderíamos fazer: se algum de nós começasse a adoecer com algo como Alzheimer, em vez de deixar o seu amigo sucumbir num declínio humilhante, o outro levá-lo-ia a Amesterdão para fazer eutanásia legal. Assim, de cada vez que um de nós se esquecia de algum equipamento fundamental para o hiking, ou se aparecesse no aeroporto no dia errado – sabes, o tipo de coisa que começa a suceder quando estás nos quarenta e tais – o outro dizia: “Bom, tens que ir para Amesterdão!” Certa vez em que caminhávamos pelo Lake District – por acaso, no caminho que a personagem Clive Linley toma -, pensei em duas personagens que poderiam chegar a um tal acordo, zangarem-se e atraírem-se simultaneamente para Amesterdão para um assassínio mútuo. Uma trama cómica bastante improvável. Nessa altura, ia a meio de O Fardo do Amor. Esbocei a ideia nessa noite e pu-la de lado para quando me apetecesse. Só quando comecei a escrevê-la é que as personagens surgiram. Depois, foi como se adquirissem vida própria.
AB: Amesterdão é muito diferente dos teus romances anteriores.
IME: Os quatro romances que o precederam – A Criança no Tempo, O Inocente, Cães Pretos e O Fardo do Amor – cresceram a partir do desejo que senti de explorar determinadas ideias. Comparativamente, Amesterdão fez-me sentir livre e irresponsável. Tinha um esquema simples e segui-o para ver onde me conduzia. Alguns leitores consideraram o romance uma diversão leve mas, para mim, mesmo nessa altura, pareceu um ponto de viragem comparável ao de The Child in Time. Achei que estava a dar mais espaço às personagens. Havia algumas ambições intelectuais de que me queria afastar. Não poderia ter escrito Expiação se não tivesse antes escrito Amesterdão.
AB: Voltando a Graham Greene – ele costumava estabelecer uma distinção entre os seus romances sérios e os seus “entretenimentos”. Em qual das categorias colocarias Amesterdão?
IME: Acho que Greene acabou por abandonar essa distinção e conseguimos perceber porquê. Mas percebo a ideia. Senti e continuo a sentir um prazer enorme na escrita de Amesterdão. Foi bem recebido, mas o seu infortúnio (em oposição ao meu) foi ter ganho o Booker Prize, altura em que algumas pessoas o começaram a desconsiderar. Mais que não fosse, por isso, gostaria que fosse julgado seriamente em conjunto com tudo o resto que eu tenha escrito. É certo que não lhe chamaria um “entretenimento” e que esperaria um julgamento menos severo.
AB: Como começou Expiação? Foi com a Briony?
IME: A Cecilia surgiu primeiro. Tal como sucedeu com O Fardo do Amor, tratou-se de um romance nascido de muitos meses de esboços e tentativas prévias. Certa manhã, escrevi umas seiscentas palavras que descreviam uma jovem a entrar numa sala de estar com um ramalhete de flores silvestres na mão, à procura de um vaso. Ela apercebe-se da presença de um jovem que jardina no exterior e deseja, simultaneamente, vê-lo e evitá-lo. Por razões que não conseguia racionalizar, sabia que tinha finalmente começado um romance.
AB: Porque é isso que nos capta, a história de amor?
IME: Não fazia ideia. Lentamente, compus um capítulo – Cecilia e Robbie dirigem-se à fonte, o vaso parte-se, ela despe-se e mergulha na água para tentar recuperar os bocados, vai-se embora sem uma palavra. Nessa altura, parei e deixei-me ficar a matutar durante uma seis semanas. Onde fica isto? Quando? Quem são eles? O que é que tenho? De seguida, recomecei e escrevi o capítulo em que Briony encena uma peça com os primos. Quando terminei, o romance já se estava a delinear. Começava a surgir uma casa de família e tinha noções muito vagas de que Dunquerque e o hospital de St. Thomas só apareceriam muito adiante. De modo fundamental, compreendi que Briony era a autora de ambos os capítulos, que ia cometer um erro terrível e que escrever uma série de esboços ao longo da sua vida seria a sua forma de fazer a sua expiação. Mais tarde, quando já tinha completado a primeira parte, troquei a ordem desses dois capítulos e reescrevi-os uma série de vezes.
AB: Que tipo de romances achas que Briony escrevia quando não estava a escrever Expiação – quando não estava a fazer a sua penitência?
IME: Ela era uma espécie de Elizabeth Bowen em The Heat of the Day, com um toque da Rosamond Lehmann em Dusty Answer e, nas suas primeiras tentativas, um dedo de Virginia Woolf. Num esboço inicial, escrevi uma nota biográfica destinada a ser incluída no final do livro. Depois, decidi-me contra. Mas aqui está ela. A questão com Greene (está permanentemente a surgir) é que estava sempre preparado para dar um toque amigável a um escritor mais novo. Foi em julho de 2001 que introduzi as minhas últimas alterações às provas.

Sobre a autora: Briony Tallis nasceu em 1922, no Surrey, filha de um funcionário público senior. Frequentou a Roedean School e, em 1940, começou a praticar enfermagem. A sua experiência enquanto enfermeira durante a Guerra trouxe-lhe o material para o seu primeiro romance, Alice Riding, publicado em 1948 e vencedor do Fitzrovia Prize de ficção desse mesmo ano. O seu romance seguinte, Soho Solstice, foi louvado por Elizabeth Bowen como “uma joia sombria de perceção psicológica”, enquanto Graham Grene a descreveu como “um dos mais interessantes talentos a ter surgido desde a Guerra”. Outros romances e coleções de short stories consolidaram a sua reputação nos anos cinquenta. Em 1962 publicou A Barn in Steventon, um estudo das encenações teatrais domésticas na infância de Jane Austen. O seu sexto romance, The Ducking Stool, foi um êxito de vendas em 1965 e foi adaptado com sucesso para o cinema, num filme com Julie Christie. Depois disso, a reputação de Briony Tallis entrou em declínio até ao momento em que o seu trabalho foi divulgado a uma geração mais jovem, no final dos anos setenta. Faleceu em julho de 2001.

AB: Achas que deste uma vida demasiadamente fácil a Briony quando lhe concedeste uma vida longa e sucesso literário?
IME: Ela nunca agiu com malícia e, além disso, nas suas circunstâncias, com muito em que pensar, uma vida longa não terá sido uma grande recompensa. Os verdadeiros vilões, Paul e Lola Marshall, conheceram o sucesso, a felicidade e tiveram vidas longas. O realismo psicológico exige que, por vezes, os maus prosperem.
AB: Cresceste a ouvir o teu pai contar histórias sobre ter sido evacuado de Dunquerque?
IME: Sim. Nos seus últimos dias (morreu em 1996) pensava muito na retirada para Dunquerque e narrou as suas experiências vezes sem conta. Tive pena de nunca lhe ter podido mostrar a minha versão. Suponho que a sua morte tenha ficado refletida de forma inconsciente no número de pais ausentes do romance. Os homens que ficaram para trás em Dunquerque devem ter tido a noção de que os seus próprios pais tinham morrido ou lutado nessa mesma nesga do norte de França. O meu pai acabou no mesmo hospital, o Alder Hey, em Liverpool, onde o seu pai tinha recebido tratamento em 1918.
AB: Não falámos muito sobre O Sonhador. Como foi a mudança de escrever para crianças depois de Cães Pretos?
IME: Não é de todo muito diferente.
AB: Quais foram as tuas regras de base?
IME: Menções nenhumas a impostos, nada de cenas de sexo explícito. Claro que há temáticas que se evitam. Mas há muito poucas coisas que não se possam debater com alguém de dez anos de idade, desde que se encontre o nível de linguagem correto. E sempre gostei de um tipo de prosa claro, preciso e simples, do género que penso poder ser entendido pelas crianças. Evitei qualquer tipo de moralidade pesada – não gosto da ficção para crianças que lhes diz como se devem comportar. Escrevi os capítulos como histórias curtas para a hora de dormir e li-as aos meus filhos. Incorporei vários detalhes familiares da vida em casa – o nosso gato, a escrivaninha suja na cozinha e por aí adiante. Os rapazes ajudaram com sugestões e, mais tarde, viram as provas, o design da capa, as críticas. Viram como se faz um livro. Nessa altura, estava a trabalhar em Cães Pretos, pelo que se tratou de uma diversão muito agradável.
AB: Em A Criança no Tempo, Stephen diz que os melhores livros para crianças têm uma qualidade, que é a invisibilidade. Pensaste nisso, nessa expressão, quando te sentaste para escrever O Sonhador?
IME: Não me recordo, mas sem dúvida que se trata de uma meta a atingir. As crianças não se vão sentar, relaxar e admirar a graça e a densidade da nossa imagética. Querem que a linguagem funcione e os transporte para a ação. Querem saber o que está a acontecer. Talvez esse tipo de invisibilidade pertença a uma idade da inocência perdida, sendo assim ainda mais apropriada para um livro infantil.
AB: És, basicamente, o único membro da tua geração que parece aspirar a isso. Temos a demonstração verbal de Amis, a exuberância de Rushdie, a erudição de Barnes.
IME: Bom, calma aí, estávamos a discutir ficção infantil. Depois de um século de modernismo, das suas experiências e da sua queda, o tipo de invisibilidade de que falámos é impossível na escrita séria. O meu ideal seria uma tela de amarelo pálido a que se soma uma série de golpes vívidos. Esses golpes levar-nos-iam diretamente para a prosa e, idealmente, impulsionar-nos-iam com energia renovada para o outro lado da coisa de que se falasse, para a própria coisa. Termos ambas as coisas… mas não passa de uma aspiração.
AB: Até que ponto é que isto tem a ver com a autoconsciência na escrita?
IME: Por vezes, sinto que cada frase contém um comentário fantasma nos seus próprios processos. Isso nem sempre ajuda, mas não acho que lhe possamos escapar. Na melhor das hipóteses, podemos tomar o facto como garantido, em vez de ficarmos escravos da autorreferência, e permanecermos igualmente fieis às capacidades sensuais e telepáticas da linguagem na medida em que transfere pensamentos e sentimentos da mente de alguém para outra pessoa.
AB: Achas que poderás vir a escrever mais livros como O Sonhador, tanto para crianças como para adultos?
IME: Quando me perguntam isso, ou sobre se escreverei um texto dramático, minto sempre e digo automaticamente que sim.
AB: Porquê?
IME: Não quero pôr de lado a possibilidade. Mas também sei que, entre livros, simplesmente esperarei para ver o que surge. Trata-se de um processo que não se pode ter, nem se quer ter, sob total controlo consciente. Claro que gostaria de escrever uma peça, ou mais um livro infantil, ou uma sequência de sonetos estonteante. Mas o que significa isso realmente? Significa que gostaria de já os ter escrito. Faz-me pensar num sonho recorrente que tenho. Estou à secretária, no meu escritório, e sinto-me especialmente bem. Abro uma gaveta e vejo, diante de mim, um romance que terminei no último verão e do qual me esqueci completamente por andar tão ocupado. Pego nele e vejo imediatamente que é brilhante. Uma obra-prima! Lembro-me de tudo, de todo o trabalho que me deu, e arrumo-o. É excelente e sinto-me muito feliz por o ter encontrado.
AB: Há  algum toque de humor nisso, como, por exemplo, o romance ter sido assinado por Martin Amis?
IME: Não, não. É um sonho feliz. É meu. Tudo o que tenho a fazer é tentar não acordar.

Tradução de Jorge Simões

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Novo romance de Steven Saylor


O celebrado autor de romances históricos com pano de fundo, regra geral, na Roma antiga, Steven Saylor, acaba de publicar o seu mais recente romance, Wrath of the Furies, ainda sem edição no nosso país.
“Personagens cativantes rodopiam pela trama inteligente e rápida. Com a sua combinação perfeita de comédia e de tragédia, Wrath poderá ser o mais cativante trabalho de Saylor até à data”, afirma a crítica do USA Today. “Uma trama de elevado suspense e uma conclusão tocante distinguem este romance de mestre que apresenta Gordiano na sua juventude”, salienta o Publisher’s Weekly.
Se tens facilidade em ler em inglês, não deixes de reservar este romance, que te levará em viagem a um passado de intriga e aventura durante as férias.

sábado, 28 de maio de 2016

Encontro com Ian McEwan - 4


Adam Begley: Há escritores que afirmam que a sua unidade básica de pensamento é o parágrafo. E há outros que dizem que é a frase. E há também quem trabalhe por cenas.
Ian McEwan: Claro que é difícil separar essas coisas, mas acho que optaria pela frase. É nela que o trabalho tem que se desenvolver a qualquer momento. Sinto que se não conseguir acertar as frases no primeiro esboço, será difícil conseguir fazê-lo mais tarde. Não impossível naturalmente, mas difícil. Assim, trabalho lentamente, como se o primeiro esboço fosse o último. Leio os parágrafos que completo em voz alta – também são uma unidade vital e gosto de sentir como é que as frases soam face a outras frases. Quando se trata de primeiros esboços de capítulos, leio-os à minha mulher, Annalena. Ou guardo dois ou três para lhos ler em férias. Gosto de pensar no capítulo como uma entidade intacta e independente com a sua própria personalidade, uma espécie de short story – portanto, esse é um bloco de construção importante. Mas também há momentos em que todas essas distinções caem por terra e fico apenas com a cena e sou capaz de trabalhar dez ou doze horas num esboço até o completar. Trata-se, regra geral, das peças de palco de que falámos anteriormente. Surgem com relativa rapidez e precisam de muitas e demoradas revisões.
AB: Wendy Lesser, a dado momento de uma crítica ao teu trabalho, diz que Graham Greene é “a eminência parda que dá cor à trama de Cães Pretos (Black Dogs).”
IME: O nome de Greene surge sempre que um escritor procura combinar o dramatismo num local exótico com algum grau de reflexão moral ou religiosa. Lassidão tropical, uma arma, uma garrafa de whisky, um dilema sem solução… Saúdo Greene por ter tornado esse território tanto seu. Leio-o com interesse e gosto do que diz sobre a própria natureza da ficção, mas não sou um grande admirador. A prosa é um pouco plana demais para o meu gosto.
AB: Permite-me que volte a citar Wendy Lesser: “O grande romancista (contrariamente ao romancista esperto que lança mão de truques) não constrói um mundo ficcional inteiramente novo de cada vez que escreve um romance. Ao contrário dos que lhe são inferiores, não pode escolher fazê-lo porque o mundo que visita na sua ficção possui uma realidade que não é inteiramente construída por ele.”
IME: Parece-me estranho que um grande romancista seja menos livre do que o seu, assim nomeado, inferior. Mas entendo o que ela quer dizer. Prefiro deixar a grandeza fora da equação. Todos os escritores, salvo talvez os autores de género, se encontram, em diferentes graus, indefesos face à sua temática. O cliché habitual é que é o tema que nos escolhe. E a personalidade do romancista deixa os seus traços inescapáveis. Penso que será assim na escultura, na música e em todas as formas de arte. Mas o romance constitui um caso especial. Enquanto forma, é tão rica em significado explícito, tão intimamente preocupada com as mentes dos outros, com os relacionamentos e com a natureza humana, além de tão extensa – dezenas de milhares de palavras – que é natural que o escritor imprima a sua personalidade a cada página. Não há nada a fazer. A forma é total no que abarca. Gosto de pensar que cada livro que inicio é uma partida inteiramente nova, que Expiação e Amesterdão (Amsterdam) são mundos completamente diferentes. Mas aprendi que, independentemente do que faça, os leitores não terão dificuldade em estabelecer uma relação com o que tenha escrito anteriormente.
AB: Há, em Cães Pretos, uma passagem acerca de uma fotografia de June e Bernard quendo eram um casal jovem. Ao olhar para o instantâneo, o narrador percebe que é “a própria fotografia que cria a ilusão da inocência. As suas ironias próprias de uma narrativa congelada transmitem aos seus intervenientes uma inconsciência nítida do facto de que mudarão ou morrerão.”
IME: Quando o passado é mediado através da fotografia, adquire uma falsa inocência. A ficção ganha à fotografia no seguinte: não condescende, não possui este tipo de ironia póstuma – trata-se de uma expressão de Susan Sontag. Os romances ajudam-nos a resistir à tentação de pensar no passado como um tempo a que falta toda a informação do presente. Quando lemos Orgulho e Preconceito ou A Vida era assim em Middlemarch (Middlemarch), não nos sentimos tentados a acreditar que lá porque as personagens usam chapéus estranhos, se deslocam a cavalo e não falam explicitamente sobre sexo, são inocentes. Isso acontece porque nos é permitido total acesso, ou acesso parcial cuidadosamente trabalhado, aos seus sentimentos e aos seus pensamentos, os seus dilemas. Partindo do princípio de que nos deixámos envolver pela narrativa, essas personagens surgem diante de nós intactas, contemporâneas, não marcadas por ironias não intencionais.
AB: É preciso coragem para se escrever sobre a ironia. Escrever, por exemplo, sobre o Mal com M maiúsculo.
IME: Especialmente quando não acreditamos nisso. Se não houver Deus, torna-se difícil transmitir uma grande crença intelectual no mal enquanto princípio organizador das coisas humanas, como uma força sobrenatural vagamente abarcada. Em Cães Pretos, June acredita no mal nesses termos, ao passo que o seu marido, Bernard, não acredita. Mas ele sabe que se trata de uma ideia poderosa. É uma forma útil de se falar dum lado da natureza humana e metaforicamente rica e, por isso mesmo, difícil de descartar. Dir-se-ia que é mais difícil de viver sem o mal do que sem Deus.
AB: Em O Fardo do Amor (Enduring Love), o mal assume a forma de uma doença mental. Que parte do romance surgiu em primeiro lugar? Foi a tentativa de assassinato no restaurante, a parte retirada do The New Yorker?
IME: Os capítulos iniciais eram sobre um homem que procurava no seu livro de endereços, que procurava alguém que pudesse conhecer com ligações ao crime e, de seguida, uma saída para comprar uma arma a uns hippies envelhecidos. Nessa altura, ainda não fazia ideia de porque é que ele queria a arma ou quem ele era. Mas sabia que queria aquela cena. Era uma das “piscinas” de Graham Greene. A primeira trincheira que escavei levou-me à tentativa de assassinato no restaurante. Foi assim que O Fardo do Amor começou, com cenas ao acaso e esboços, um assobio na escuridão. Queria escrever algo que celebrasse a racionalidade. Desde Blake, Keats e Mary Shelley que o impulso racional ficou associado à ausência de sentimentos, à destruição fria. Na nossa literatura, são sempre as personagens que não conseguem confiar nos seus corações que acabam mal. No entanto, a nossa capacidade de raciocinar é um aspeto maravilhoso da nossa natureza e, com frequência, tudo o que temos a opor ao caos social, à injustiça e aos piores excessos das convicções religiosas. Quando escrevia O Fardo do Amor, estava a responder a um velho amigo que certa vez me disse que achava que Bernard, o racionalista em Cães Pretos, nunca é convenientemente punido. É verdade, a interpretação espiritual que June faz da sua experiência dita a metáfora central do romance.
AB: Achas que a ciência se torna uma personagem em O Fardo do Amor, do mesmo modo que a história se torna uma personagem em O Inocente e em Cães Pretos?
IME: Não exatamente. As fronteiras da ciência alargaram-se de forma muito interessante durante as décadas mais recentes. As emoções, a consciência, a própria natureza humana, tornaram-se tópicos legítimos da biologia. E, naturalmente, essas temáticas são muito interessantes para o romancista. Essa invasão do nosso território pode ser frutífera. Com esse romance, surgiu a possibilidade de integrar a ciência melhor do que em A Criança no Tempo.
Há um momento, em O Fardo do Amor, em que Joe recorda uma conversa que teve com Clarissa sobre o sorriso de um bebé. Joe cita E. O. Wilson, que fala do sorriso como um “libertador social”, um elemento da natureza humana que foi selecionado para conquistar para aquele bebé uma fatia maior de amor parental. Tudo perfeitamente razoável do lado do Joe, até um certo ponto. É nítido que não se trata de um comportamento aprendido – mesmo os bebés cegos sorriem. Está nos genes, como se diz. Mas Clarissa não acha que essa seja uma boa descrição do sorriso de um bebé. E Joe – trata-se de uma falha no seu carácter – pressiona-a, cansa-a impensadamente, insensivelmente, porque até ele compreende que aquilo que realmente estão a discutir é a ausência de um bebé nas suas vidas.
Queria fazer mais do que simplesmente correr a ciência à procura de metáforas interessantes. O pensamento biológico tornou possível friccionar o emocional contra o científico numa pequena cena como essa. É muito mais interessante do que tentar incluir a mecânica quântica ou um ponto de vista cosmológico num romance. É mais maduro. É algo à escala humana.
AB: O apêndice de O Fardo do Amor, com a sua descrição de um caso clínico, enganou alguns críticos americanos.
IME: Diverti-me a escrever esse apêndice. Um determinado crítico castigou o romance porque aderia demasiado ao caso clínico no qual se baseava.
AB: Joe tem uma óbvia simpatia para com a biologia evolucionista. Até que ponto isso reflete as tuas próprias convicções?
IME: Só os fanáticos religiosos poderão querer negar que somos um produto da evolução biológica. A questão reside em saber quanto do nosso passado evolutivo nos explica. A minha opinião é de que se trata de mais do que costumávamos gostar de crer e um pouco menos do que os expoentes da psicologia evolutiva desejariam. Conseguimos descrever uma dada natureza humana, um conjunto de predisposições existentes em diferentes culturas e não conseguimos adivinhar quais as pressões adaptativas que lhes deram origem. Mas não sei até que ponto ou com que grau de profundidade isso nos pode levar às peculiaridades do comportamento individual. A cultura, o ambiente social, que em si ajudou a moldar os nossos genes, emite um sinal espantoso e fascinante. É difícil separar as coisas. Muito claramente, há um sentido de que as nossas vidas moldam aquilo que somos. Mas não nascemos em branco e não podemos assumir qualquer forma. As nossas diferenças não são infinitas e a forma como as pessoas se aproximam é, pelo menos, tão interessante como as divergências. Trata-se de uma área sobre a qual escritores e biólogos poderiam ter muito a debater e uma das razões porque escrevi O Fardo do Amor. (continua)

Tradução de Jorge Simões

terça-feira, 10 de maio de 2016

Prémio Nacional de Poesia até 15 de maio


Está a decorrer, até 15 de maio, a 4ª edição do Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, instituído pela Câmara de Benavente.
Se tens uma boa coleção de poemas inéditos, consulta o regulamento do concurso em Prémio de Poesia e torna a tua obra conhecida.
Deverás enviar cinco cópias do teu trabalho, com um mínimo de 40 folhas A4, processadas em computador e impressas de um só lado. Não te esqueças ainda de que deverás concorrer sob pseudónimo. Boa sorte!

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Encontro com Ian McEwan - 3


Adam Begley: Já escreveste algum script de cinema que te tenha deixado satisfeito?
Ian McEwan: Senti-me bem com um bom número deles. O que acontece a seguir é que nos pode magoar. A minha primeira experiência, The Ploughman’s Lunch, que decorreu na perfeição, estragou-me. O Richard Eyre e eu decidimos que gostaríamos de fazer um filme com um ambiente que retratasse o estado da nação. Durante vários meses, recolhi todo o tipo de materiais – andei pelos estúdios da BBC, li livros sobre a crise do Suez, assisti a conferências políticas e acompanhei o trabalho em torno de algumas publicidades televisivas. Mais tarde, visitei a Polónia no tempo do Solidariedade e imaginei como é que uma nação se podia construir a partir do sonho.
Graham Greene tem uma boa imagem deste processo – há momentos de inspiração a que dá o nome de piscinas. Escrever um romance consiste em escavar as trincheiras entre as piscinas. As minhas piscinas não eram nada de tão grandioso que lhes pudesse chamar uma fonte de inspiração – eram apenas os cenários ou cenas que eu queria. Assim que arranjei forma de estabelecer uma ligação entre tudo, redigi um plano para o filme em apenas duas páginas e mostrei-as ao Richard, durante o almoço, no National Theatre, onde ele trabalhava. Ele leu-as e disse de imediato que era o tipo de coisa que queria fazer.
Escrevi o script em seis semanas. O Richard tinha algumas sugestões como, por exemplo, que seria bom se a personagem principal regressasse a casa para podermos compreender os seus antecedentes. A Guerra das Malvinas começou e forneceu alguns paralelismos interessantes com o Suez. Mas, na verdade, aquelas duas páginas que mostrei ao Richard no início eram, mais ou menos, o filme tal como acabou por se fazer. A experiência foi simples e agradável. Nada correu mal. Na altura, não fazia ideia de como isso era incomum.
AB: E como foi a tua experiência com o filme The Innocent?
IME: Morosa, confusa, dolorosa. Eu sabia que era má ideia adaptar o meu próprio romance para o ecrã, mas deixei que me convencessem a fazê-lo. Senti-me atraído pela oportunidade de incorporar a queda do Muro de Berlim, que ocorreu alguns meses depois de ter terminado de escrever o romance em junho de 1989. Todos os elementos eram óptimos separadamente – um excelente conjunto de atores, com a Isabella Rossellini, Anthony Hopkins e Campbell Scott e John Schlesinger na realização. Mas faltou a química, como se diz. Não era um grupo feliz. Só as cenas de ação ficaram bem, como sempre ficam.
AB: De onde surgiu a ideia para O Jardim de Cimento? Penso sempre que se trata de um livro sobre “uma infinita tristeza municipal” – uma linha do teu Two Fragments.
IME: Há anos que andava a adiar escrever um romance. Regressei de uma espectacular primeira visita aos Estados Unidos, em 1976. Andava a brincar com ideias acerca de crianças que tentavam sobreviver sem adultos – esta é a base de muitos livros infantis e, naturalmente, a essência de Lord of the Flies. Andava a pensar na possibilidade de escrever uma versão urbana dessa história, mas ainda não tinha um caminho definido. Nessa altura, morava em Stockwell, no sul de Londres. Era uma vizinhança desolada, de prédios altos, e uma terra de ninguém coberta de ervas daninhas. Certa tarde, estava sentado à secretária e aquelas quatro crianças, com as suas diferentes identidades, surgiram de súbito na minha imaginação. Não tive que as construir, já me surgiram completas. Tomei algumas notas e caí num sono profundo. Quando acordei, pelo menos sabia que romance queria escrever. Trabalhei obsessivamente durante um ano, cortando partes da escrita a toda a hora, porque queria que o romance fosse breve e intenso.
AB: Foi algum tipo de exorcismo?
IME: Bom, mais um resumo. Este e o meu romance seguinte, Estranha Sedução (The Confort of Strangers), pôs fim a um período de dez anos na minha escrita – ficção curta, formalmente simples e linear, claustrofóbica, dessocializada, sexualmente estranha, escura. Finalmente, senti que me tinha encurralado a mim mesmo. Afastei-me da ficção por uns tempos. Escrevi um filme para a televisão que se passava durante a operação de descodificação em Bletchley Park durante a guerra. Depois, foi The Ploughman’s Lunch e um oratório para o Michael Berkeley. Quando, em 1983, iniciei um novo romance, A Criança no Tempo, já pensava em termos de localizações físicas específicas e tempos – mesmo o próprio tempo – e no tecido social e num certo grau de ambição formal.
AB: A Criança no Tempo começa com o rapto de uma criança – um daqueles momentos dramáticos que mudam a vida e que se tornam um marco.
IME: Sim. Ainda tinha interesse em escrever acerca dos limites da experiência humana. Mas agora começava a encarar as personagens com maior seriedade. Esses momentos de crises estavam destinados a tornar-se uma forma de explorar e testar o carácter. Como podemos suportar, ou não suportar, uma experiência extrema, quais as qualidades morais e interrogações que são avançadas, de que modo vivemos as consequências das nossas decisões, como é que a memória nos atormenta, o que o tempo faz, quais os nossos recursos diante de uma queda. Na época, isso não era exatamente  uma escolha consciente ou um programa sistemático, era apenas o que sucedia em vários romances, começando por este. E é claro que essas cenas – o rapto da criança, os cães pretos, a queda de um balão de hélio, etc. – ofereciam, em si mesmas, possibilidades ficcionais atrativas. Apresentavam desafios de ritmo, descrição, uma espécie de rufar dos tambores fraseado, cadências que só conseguimos com cenas de ação. E ofereciam igualmente uma forma de manter o leitor preso à leitura. E eu conseguia ter ação e ideias. Durante algum tempo, desenvolvi um certo gosto por esses diferentes elementos.
Em 1986, estava no festival literário de Adelaide, onde li a cena de A Criança no Tempo em que a rapariguinha é raptada de um supermercado. Tinha concluído um primeiro esboço na semana anterior e queria experimentá-lo. Assim que terminei, Robert Stone levantou-se e pronunciou um discurso pleno de paixão. Parecia mesmo que lhe vinha do coração. Disse: “Porque fazemos isto? Porque é que os escritores o fazem e porque é que o querem? Porque é que vamos buscar, ao fundo de nós mesmos, o pior que podemos imaginar? A literatura, especialmente a literatura contemporânea, ufana-se em busca do que possa encontrar de pior.”
Ainda não tenho uma resposta clara para isso. Caio repetidamente na noção do teste ou investigação do carácter e da nossa natureza moral. Como James certa vez interrogou, o que é um incidente senão uma ilustração do carácter? Talvez usemos esses cenários mais negros para salientar a nossa própria capacidade moral. E talvez precisemos de brincar com os nossos medos dentro dos limites seguros do imaginário como uma forma de exorcismo esperado.
AB: Mencionaste o prazer que sentiste ao escrever O Inocente (The Innocent). Alguns leitores poderão achar isso difícil de entender, dada a reputação sangrenta do romance – uma descrição minuciosa de um corpo cortado membro a membro e empacotado numa mala.
IME: Essa reputação baseia-se em meia dúzia de páginas. Quanto ao resto, no que me tocava, O Inocente era, para mim, uma nova partida em direção ao romance histórico. A transferência de poder dos britânicos para os americanos foi um processo longo e demorado e só terminou na década de cinquenta, com a humilhação que os britânicos sofreram no Suez. Sempre me senti atraído por situações em que acontecimentos de grande escala se refletem na vida privada. Um jovem inglês desajeitado, engenheiro de comunicações telefónicas, a despontar na Guerra Fria da Berlim de meados dos nos cinquenta, descobrindo o poder do dinheiro e da confiança americanos, o alcance do seu exército, as seduções da sua comida, música e filmes; e uma cidade que emergia das suas ruínas, assombrada pelos fantasmas do seu passado recente – tudo isso absorveu-me por inteiro. Perdi-me em velhos mapas e fotografias. Tornei-me um engenheiro de comunicações telefónicas.
Mantive-me longe de Berlim enquanto escrevia o romance, que decorria principalmente em 1955. No entanto, no capítulo final, que tem lugar em 1987, o herói envelhecido, Leonard, decide revisitar a cidade e decidi que, já que assim era, eu podia ir com ele. Cheguei a Berlim com uma pesada gripe. Aquela metade ocidental da cidade, ousada e opulenta, não ficava no espaço arruinado que eu ficara a conhecer tão bem. Dei alguns passeios, sentindo-me velho e espantado. Visitei o prédio de apartamentos onde Leonard costumava estar com a sua amante e senti feridas de amor ridículas por uma rapariga que não existia. Fui à ponta sudoeste de Berlim, onde se localizava o túnel de espionagem. Trepei a uma cerca para chegar a um descampado. Observado pelos binóculos dos guardas da Alemanha de Leste nas suas torres de vigia, deambulei entre os montes e as trincheiras e encontrei bocados de um velho cabo telefónico, pedaços de juta feita em Chicago, um antigo interruptor. E, uma vez mais, senti a nostalgia de um tempo que nunca vivera. Tinha-me distanciado o mais que podia daquelas short stories e dois pequenos romances em que achava que o tempo e o local não passavam de distrações irrelevantes. Estava, agora, numa cidade estrangeira, sentindo o passar dos anos e convencendo-me de que era uma das minhas personagens.
AB:  Convenceste-te tal como esperavas convencer os teus leitores.
IME: Normalmente, gostaríamos de ser capazes de não nos autoiludirmos.
AB: Realizaste algum tipo de pesquisa médica para O Inocente?
IME: Fui jantar com Michael Dunnill, que era o professor de Patologia em Merton. Contei-lhe que planeava uma cena em que um homem assustado e inexperiente dissecava um corpo.
AB: E ele disse: “Oh, deve ser o Ian McEwan!”
IME: Disse uma coisa muito mais assustadora. Quando lhe perguntei quanto tempo demoraria serrar um braço, convidou-me para uma das suas autópsias regulares de segunda de manhã. “Venha…”, disse-me, “…e cortaremos um braço para ver.” “E a família?”, interroguei. E ele replicou: “Oh, o meu assistente recoloca o braço no sítio e nem se vai notar.”
Comecei a sentir sérias dúvidas relativamente àquele encontro. Pensei que a escrita estava a ir bem e que não valeria a pena exagerar. Mas também senti que, enquanto escritor, tinha a obrigação de ir. Então, afortunadamente, jantei com o Richard Eyre, que achou que ir seria uma maluquice. "Vais inventá-lo muito melhordo que o possas descrever", disse ele imediatamente e eu percebi que tinha razão. Mais tarde, mostrei a cena a Michael Dunnil e ele aceitou-a. Se tivesse ido à autópsia, teria tido que me tornar jornalista - e não me considero um bom jornalista. Consigo descrever com muito mais detalhe o que imagino do que aquilo que me recordo de ter visto. (continua)

Tradução de Jorge Simões