domingo, 30 de outubro de 2016

Encontro com Hemingway - 1


Apresentamos, a partir de hoje e de forma sequenciada, uma entrevista com o celebrado autor Ernest Hemingway, ganhador do Nobel da Literatura em 1954 e uma das mais importantes figuras da escrita criativa do século XX. O encontro data de 1958 e tem como entrevistador George Plimpton.

George Plimpton: Sente que as horas que gasta no processo da escrita são agradáveis?
Hemingway: Muito.
George Plimpton: Poder-nos-ia falar sobre esse processo? Quando trabalha? Mantém horários rígidos?
Hemingway: Quando trabalho num livro ou numa história, escrevo todas as manhãs, logo que possível, após o raiar do dia. Não há ninguém que nos perturbe e está fresco ou frio e trabalhamos e aquecemos à medida que escrevemos. Lemos o que escrevemos e, como pausamos sempre num ponto em que sabemos o que vai acontecer a seguir, retomamos a partir daí. Escrevemos até chegarmos a um ponto em que ainda temos inspiração e sabemos como a história vai continuar e paramos e procuramos viver até ao dia seguinte, quando retomamos o trabalho. Podemos, por exemplo, ter começado às seis da manhã e podemos continuar até ao meio-dia ou mesmo antes disso. Quando paramos, sentimo-nos tão vazios, ou simultaneamente nunca vazios mas no processo de ganhar novas energias, como quando fizemos amor com alguém que amamos. Nada nos pode magoar, nada de mau pode acontecer, nada tem significado até ao dia seguinte, quando retomamos o trabalho. Esperar pelo dia seguinte é a parte difícil.
George Plimpton: Consegue esquecer os seus projetos quando está longe da máquina de escrever?
Hemingway: Claro. Mas trata-se de algo que exige disciplina e trata-se de uma disciplina adquirida. Tem que ser.
George Plimpton: Faz alguma reescrita enquanto relê o que escreveu no dia anterior? Ou trata-se de algo que surge mais tarde, quando tudo está terminado?
Hemingway: Todos os dias reescrevo o que escrevi no dia anterior. Quando termino, naturalmente que avanço. Posso voltar a corrigir e a reescrever quando outra pessoa passa o texto à máquina e o vemos escrito dessa maneira. A última oportunidade são as provas. Sinto-me grato por essas diferentes oportunidades.
George Plimpton: Até que ponto reescreve?
Hemingway: Depende. Reescrevi o final de Adeus às Armas, a última página, trinta e nove vezes antes de me dar por satisfeito.
George Plimpton: Foi por causa de algum problema técnico? O que é que o empatou?
Hemingway: Arranjar as palavras certas.
George Plimpton: É a reescrita que aviva a inspiração?
Hemingway: A releitura coloca-nos sempre numa posição em que temos que avançar, sabendo que é o melhor que conseguimos fazer naquele momento. Há sempre inspiração algures.
George Plimpton: Mas há momentos em que a inspiração simplesmente está ausente?
Hemingway: Naturalmente. Mas se tivermos parado num momento em que sabemos o que se segue, podemos avançar. Desde que consigamos começar, tudo está bem. A inspiração acaba por chegar.
George Plimpton: Thornton Wilder fala-nos de técnicas mnemónicas que ajudam o escritor a avançar. Ele diz que certa vez lhe contou que aguçava vinte lápis.
Hemingway: Não acho eu alguma vez tenha tido vinte lápis em simultâneo. Se gastar sete lápis número 2, terei trabalhado bem.
George Plimpton: Em que lugares gostou mais de trabalhar? O hotel Ambos Mundos deve ter sido um deles, tendo em conta o número de livros que lá escreveu. Ou aquilo que o rodeia tem pouca influência no que escreve?
Hemingway: O Ambos Mundos, em Havana, era um ótimo local para trabalhar. O Finca é esplêndido, ou era. Mas trabalhei bem onde quer que tenha sido. Ou seja, consegui trabalhar o melhor que pude em circunstâncias variadas. O telefone e os visitantes é que destroem o trabalho.
George Plimpton: A estabilidade emocional é importante para se trabalhar bem? Certa vez, contou-me que só conseguia escrever bem se estivesse apaixonado. Poderia falar-nos sobre isso?
Hemingway: Que pergunta! Mas parabéns por tentar. Posso escrever em qualquer altura em que as pessoas não me interrompam. Ou se conseguirmos ser antipáticos. Mas sem dúvida que a melhor escrita é quando estamos apaixonados. Se não se importar, preferiria não desenvolver.
George Plimpton: E a estabilidade financeira? Trata-se de algo que pode prejudicar a boa escrita?
Hemingway: Se chegar suficientemente cedo e amarmos tanto a vida como o nosso trabalho, é preciso ter uma personalidade muito forte para se resistir às tentações. Mas se a escrita se tiver tornado o nosso principal vício e o nosso maior prazer, só a morte a poderá parar. Aí, a estabilidade financeira é uma grande ajuda porque não perdemos tempo com preocupações desse tipo. As preocupações destroem a capacidade de escrever. Problemas de saúde são maus porque geram preocupações que nos atacam o subconsciente e destroem as nossas reservas.
George Plimpton: Consegue lembrar-se do momento exato em que decidiu ser escritor?
Hemingway: Não, sempre quis ser escritor.
George Plimpton: Philip Young, na biografia que escreveu sobre si, sugere que o choque traumático do ferimento de granada que sofreu em 1918, poderá ter tido uma forte influência em si enquanto escritor. Lembro-me de que em Madrid falou um pouco acerca dessa tese, tendo-a descartado e acrescentando que achava que o equipamento do artista não era uma característica adquirida, mas sim herdada, no sentido Mendeliano.
Hemingway: É evidente que nesse ano, em Madrid, os meus pensamentos estavam um pouco conturbados. A única coisa de bom poderá ter sido o facto de ter falado muito pouco sobre o livro do senhor Young e sobre a sua teoria literária do trauma. Talvez as duas concussões e uma fratura craniana, nesse ano, me tenham levado a fazer declarações irresponsáveis. Recordo-me de lhe ter dito que acreditava que a imaginação poderia resultar de uma experiência racial herdada. Parece bem enquanto conversa de café pós-concussão, mas é tudo. Então, até ao próximo trauma libertador, fiquemos por aí. Pode ser? Mas obrigado por não mencionar os nomes de alguns parentes que eu possa ter implicado. A parte divertida da conversa é a exploração, mas grande parte dela e tudo que for irresponsável não deve ser escrito. É que a partir do momento em que alguém a escreve temos que a justificar. Podemos ter dito algo para confirmar se acreditávamos ou não no que estávamos a dizer. Quanto ao que disse, os efeitos dos ferimentos variam muito. Ferimentos simples e sem grandes consequências não têm propriamente relevância. Por vezes, dão-nos confiança. Ferimentos que causam problemas sérios aos ossos e aos nervos não são bons para os escritores nem para ninguém.
George Plimpton: Qual diria ser a melhor prática intelectual para quem quiser tornar-se escritor?
Hemingway: Digamos que deveria sair de casa e enforcar-se por ter descoberto que escrever é incrivelmente difícil. De seguida, dever-se-ia mutilar e ver-se forçado por si mesmo a escrever o melhor que conseguisse durante o resto da sua vida. Pelo menos, teria a história do enforcamento como ponto de partida.
George Plimpton: E as pessoas que ingressaram numa carreira académica? Acha que o grande número de escritores com lugares no ensino representa um compromisso para as suas carreiras literárias?
Hemingway: Depende do que pretendemos dizer com compromisso. Estamos a falar de uma mulher que se viu comprometida? Ou do compromisso do homem do estado? Ou do compromisso com o nosso açougueiro ou alfaiate de lhe pagar um pouco mais, só que mais tarde? Um escritor que consegue escrever e ensinar em simultâneo deve fazê-lo. Muitos escritores competentes provaram que é possível. Eu sei que não seria capaz e admiro os que o conseguiram. Ainda assim, penso que talvez a vida académica possa colocar um ponto final nas experiências com o mundo exterior e que isso poderá, eventualmente, limitar o conhecimento do mundo. Mas é verdade que o conhecimento exige maior responsabilidade do escritor e torna a escrita mais difícil. Procurar escrever algo perene é um trabalho a tempo inteiro, mesmo se apenas algumas horas no dia são ocupadas com a escrita em si. Podemos comparar um escritor a um poço. Há tantos tipos de poços como escritores. O importante é que o poço tenha boa água e é melhor retirar uma quantidade de água regularmente do que esvaziar o poço e esperar que se volte a encher. Sei que me estou a afastar da pergunta, mas a pergunta não foi muito interessante. (continua)

Tradução de Jorge Simões

domingo, 16 de outubro de 2016

Mês Internacional das Bibliotecas Escolares


Este ano, o Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, subordinado ao tema Aprende a Descodificar o teu Mundo, iniciou-se, na nossa biblioteca, com um programa de visitas para todas as turmas dos 7º e 8º anos.
Recebemos os alunos para os familiarizarmos com o novo espaço de que podem usufruir, para lhes darmos uma pequena formação de utilizadores e para os iniciarmos na interessante tarefa de pesquisadores de informação.
Quisemos, também, cativá-los para a importância dos livros na vida de todos e oferecemos-lhes a leitura de um pequeno conto de Sophie Carquain, O Encontro com a Dama das Histórias
Esperamos que, na sequência destas atividades, os nossos alunos sintam que estaremos sempre disponíveis para os ajudar e acompanhar.

Nobel da Literatura para Dylan


Aos 75 anos de idade, Bob Dylan foi agraciado com o Nobel da Literatura. Trata-se de uma escolha polémica, defendida, por um lado, pelos que consideram vir na tradição do trabalho de autores como William Shakespeare, e atacada, por outro, por quem salienta tratar-se de um músico e não de um escritor no sentido mais clássico do termo. A questão-base é que the times they are a-changin'
A verdade é que, bem feitas as contas, Dylan poderá ter mais merecimento do que alguns vencedores anteriores como o iconoclasticamente desesperado Camilo José Cela ou o meramente político Alexander Soljenitsin. Até ao momento, o autor ainda não se pronunciou quanto ao prémio. Na Biblioteca do Castêlo, esperamos sinceramente que não siga o exemplo de Sartre que, num gesto datado de snobismo, recusou, em 1964, a honra proporcionada pelo Comité.


Dylan conta, naturalmente, com inúmeras biografias. Para quem quiser conhecer melhor a personagem, em lugar de recomendarmos Chronicles, que se tornou um lugar-comum em termos de recomendação, chamamos a atenção para Behind the Shades - The 20th Anniversary Edition, de Clinton Heylin, provavelmente a obra mais completa até hoje escrita sobre o longo percurso do autor. Editado em 2011 pela Faber & Faber, conta com 931 páginas de uma investigação aturada e não faz favores a ninguém. A ler.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Um conto de Machado de Assis


Nascido no Rio de Janeiro em 1839 e falecido na mesma cidade em 1908, Joaquim Maria Machado de Assis foi o introdutor do Realismo no Brasil e um dos mais importantes autores daquele país, com nove romances e peças teatrais, duzentos contos, cinco coletâneas de poemas e sonetos e mais de seiscentas crónicas publicados. Foi, também, em 1897, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. 
Trazemos hoje a este espaço um conto completo do autor. Esperamos que gostem.

CONTO ALEXANDRINO 

Capítulo I  No mar 

— O quê, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro. — Em primeiro lugar, Pítias, tu omites uma condição: — é que o rato deve expirar debaixo do escalpelo, para que o sangue traga o seu princípio. Essa condição é essencial. Em segundo lugar, uma vez que me apontas o exemplo do rato, fica sabendo que já fiz com ele uma experiência, e cheguei a produzir um ladrão... — Ladrão autêntico? — Levou-me o manto, ao cabo de trinta dias, mas deixou-me a maior alegria do mundo: — a realidade da minha doutrina. Que perdi eu? um pouco de tecido grosso; e que lucrou o universo? a verdade imortal. Sim, meu caro Pítias; esta é a eterna verdade. Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia... — Os do sábio na coruja, interrompeu Pítias sorrindo. — Não; a coruja é apenas um emblema; mas a aranha, se pudéssemos transferi-la a um homem, daria a esse homem os rudimentos da geometria e o sentimento musical. Com um bando de cegonhas, andorinhas ou grous, faço-te de um caseiro um viajeiro. O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação no dos pavões... Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe. Esta é a minha filosofia recente; esta é a que vou divulgar na corte do grande Ptolomeu. Pítias sacudiu a cabeça, e fixou os olhos no mar. O navio singrava, em direitura a Alexandria, com essa carga preciosa de dois filósofos, que iam levar àquele regaço do saber os frutos da razão esclarecida. Eram amigos, viúvos e qüinquagenários. Cultivavam especialmente a metafísica, mas conheciam a física, a química, a medicina e a música; um deles, Stroibus, chegara a ser excelente anatomista, tendo lido muitas vezes os tratados do mestre Herófilo. Chipre era a pátria de ambos; mas, tão certo é que ninguém é profeta em sua terra, Chipre não dava o merecido respeito aos dois filósofos. Ao contrário, desdenhava-os; os garotos tocavam ao extremo de rir deles. Não foi esse, entretanto, o motivo que os levou a deixar a pátria. Um dia, Pítias, voltando de uma viagem, propôs ao amigo irem para Alexandria, onde as artes e as ciências eram grandemente honradas. Stroibus aderiu, e embarcaram. Só agora, depois de embarcados, é que o inventor da nova doutrina expô-la ao amigo, com todas as suas recentes cogitações e experiências. — Está feito, disse Pítias, levantando a cabeça, não afirmo nem nego nada. Vou estudar a doutrina, e se a achar verdadeira, proponho-me a desenvolvê-la e divulgá-la. — Viva Hélios! exclamou Stroibus. Posso contar que és meu discípulo.

Capítulo II Experiência

Os garotos alexandrinos não trataram os dois sábios com o escárnio dos garotos cipriotas. A terra era grave como a íbis pousada numa só pata, pensativa como a esfinge, circunspecta como as múmias, dura como as pirâmides; não tinha tempo nem maneira de rir. Cidade e corte, que desde muito tinham notícia dos nossos dois amigos, fizeram-lhes um recebimento régio, mostraram conhecer os seus escritos, discutiram as suas idéias, mandaram-lhes muitos presentes, papiros, crocodilos, zebras, púrpuras. Eles, porém, recusaram tudo, com simplicidade, dizendo que a filosofia bastava ao filósofo, e que o supérfluo era um dissolvente. Tão nobre resposta encheu de admiração tanto aos sábios como aos principais e à mesma plebe. E aliás, diziam os mais sagazes, que outra coisa se podia esperar de dois homens tão sublimes, que em seus magníficos tratados... — Temos coisa melhor do que esses tratados, interrompia Stroibus. Trago uma doutrina, que, em pouco, vai dominar o universo; cuido nada menos que em reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes. — Não é esse o ofício dos deuses? objetava um. — Eu violei o segredo dos deuses, acudia Stroibus. O homem é a sintaxe da natureza, eu descobri as leis da gramática divina... — Explica-te. — Mais tarde; deixa-me experimentar primeiro. Quando minha doutrina estiver completa, divulgá-la-ei como a maior riqueza que os homens jamais poderão receber de um homem. Imaginem a expectação pública e a curiosidade dos outros filósofos, embora
incrédulos de que a verdade recente viesse aposentar as que eles mesmos possuíam. Entretanto, esperavam todos. Os dois hóspedes eram apontados na rua até pelas crianças. Um filho meditava trocar a avareza do pai, um pai a prodigalidade do filho, uma dama a frieza de um varão, um varão os desvarios de uma dama, porque o Egito, desde os Faraós até aos Lágides, era a terra de Putifar, da mulher de Putifar, da capa de José, e do resto. Stroibus tornou-se a esperança da cidade e do mundo. Pítias, tendo estudado a doutrina, foi ter com Stroibus, e disse-lhe: — Metafisicamente, a tua doutrina é um despropósito; mas estou pronto a admitir uma experiência, contando que seja decisiva. Para isto, meu caro Stroibus, há só um meio. Tu e eu, tanto pelo cultivo de razão como pela rigidez do caráter, somos o que há mais oposto ao vício do furto. Pois bem, se conseguires incutir-nos esse vício, não será preciso mais; se não conseguires nada (e pode crê-lo, porque é um absurdo) recuarás de semelhante doutrina, e tornarás às nossas velhas meditações. Stroibus aceitou a proposta. — O meu sacrifício é o mais penoso, disse ele, pois estou certo do resultado; mas que não merece a verdade? A verdade é imortal; o homem é um breve momento... Os ratos egípcios, se pudessem saber de um tal acordo, teriam imitado os primitivos hebreus, aceitando a fuga para o deserto, antes do que a nova filosofia. E podemos crer que seria um desastre. A ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas; e desde que a ignorância dos ratos, a sua fraqueza, a superioridade mental e física dos dois filósofos eram outras tantas vantagens na experiência que ia começar, cumpria não perder tão boa ocasião de saber se efetivamente o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído pelas várias espécies de animais, e se era possível transmiti-lo. Stroibus engaiolava os ratos; depois, um a um, ia-os sujeitando ao ferro. Primeiro, atava uma tira de pano no focinho do paciente; em seguida, os pés, finalmente, cingia com um cordel as pernas e o pescoço do animal à tábua da operação. Isto feito, dava o primeiro talho no peito, com vagar, e com vagar ia enterrando o ferro até tocar o coração, porque era opinião dele que a morte instantânea corrompia o sangue e retirava-lhe o princípio. Hábil anatomista, operava com uma firmeza digna do propósito científico. Outro, menos destro, interromperia muita vez a tarefa, porque as contorções de dor e de agonia tornavam difícil o meneio do escalpelo; mas essa era justamente a superioridade de Stroibus: tinha o pulso magistral e prático. Ao lado dele, Pítias aparava o sangue e ajudava a obra, já contendo os movimentos convulsivos do paciente, já espiando-lhe nos olhos o progresso da agonia. As observações que ambos faziam eram notadas em folhas de papiro; e assim ganhava a ciência de duas maneiras. Às vezes, por divergência de apreciação, eram obrigados a escalpelar maior número de ratos do que o necessário; mas não perdiam com isso, porque o sangue dos excedentes era conservado e ingerido depois. Um só desses casos mostrará a consciência com que eles procediam. Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor até chegar ao azul claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de canela como o tom final da morte. Estavam na última operação do dia; mas o ponto valia a pena, e, não obstante o cansaço, fizeram sucessivamente dezenove experiências sem resultado definitivo; Pítias insistia pela cor azul, e Stroibus pela cor de canela. O vigésimo rato esteve prestes a pô-los de acordo, mas Stroibus advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a e escalpelaram mais vinte e cinco. Destes, o primeiro ainda os deixou em dúvida; mas os outros vinte e quatro provaram-lhes que a cor final não era canela nem azul, mas um lírio roxo, tirando a claro. A descrição exagerada das experimentações deu rebate à porção sentimental da cidade, e excitou a loqüela de alguns sofistas; mas o grave Stroibus (com brandura, para não agravar uma disposição própria da alma humana) respondeu que a verdade valia todos os ratos do universo, e não só os ratos, como os pavões, as cabras, os cães, os rouxinóis, etc.; que, em relação aos ratos, além de ganhar a ciência, ganhava a cidade, vendo diminuída a praga de um animal tão daninho; e, se a mesma consideração não se dava com outros animais, como, por exemplo, as rolas e os cães, que eles iam escalpelar daí a tempos, nem por isso os direitos da verdade eram menos imprescritíveis. A natureza não há de ser só a mesa de jantar, concluía em forma de aforismo, mas também a mesa da ciência. E continuavam a extrair o sangue e a bebê-lo. Não o bebiam puro, mas diluído em um cozimento de cinamomo, suco de acácia e bálsamo, que lhe tirava todo o sabor primitivo. As doses eram diárias e diminutas; tinham, portanto, de aguardar um longo prazo antes de produzido o efeito. Pítias, impaciente e incrédulo, mofava do amigo. — Então? nada? — Espera, dizia o outro, espera. Não se incute um vício como se cose um par de sandálias.

Capítulo III Vitória

Enfim, venceu Stroibus! A experiência provou a doutrina. E Pítias foi o primeiro que deu mostras da realidade do efeito, atribuindo-se umas três idéias ouvidas ao próprio Stroibus; este, em compensação, furtou-lhe quatro comparações e uma teoria dos ventos. Nada mais científico do que essas estréias. As idéias alheias, por isso mesmo que não foram compradas na esquina, trazem um certo ar comum; e é muito natural começar por elas antes de passar aos livros emprestados, às galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc. A própria denominação de plágio é um indício de que os homens compreendem a dificuldade de confundir esse embrião da ladroeira com a ladroeira formal. Duro é dizê-lo; mas a verdade é que eles deitaram ao Nilo a bagagem metafísica, e dentro de pouco estavam larápios acabados. Concertavam-se de véspera, e iam aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas dracmas. Como furtassem sem estrépito, ninguém dava por eles; mas, ainda mesmo que os suspeitassem, como fazê-lo crer aos outros? Já então Ptolomeu coligira na biblioteca muitas riquezas e raridades; e, porque conviesse ordená-las, designou para isso cinco gramáticos e cinco filósofos, entre estes os nossos dois amigos. Estes últimos trabalharam com singular ardor, sendo os primeiros que entravam e os últimos que saíam, e ficando ali muitas noites, ao clarão da lâmpada, decifrando, coligindo, classificando. Ptolomeu, entusiasmado, meditava para eles os mais altos destinos. Ao cabo de algum tempo, começaram a notar-se faltas graves: — um exemplar de Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2º e o 3º livros da República de Platão, etc., etc. A autoridade pôs-se à espreita; mas a esperteza do rato, transferida a um organismo superior, era naturalmente maior, e os dois ilustres gatunos zombavam de espias e guardas. Chegaram ao ponto de estabelecer este preceito filosófico de não sair dali com as mãos vazias; traziam sempre alguma coisa, uma fábula, quando menos. Enfim, estando a sair um navio para Chipre, pediram licença a Ptolomeu, com promessa de voltar, coseram os livros dentro de couros de hipopótamo, puseram-lhes rótulos falsos, e trataram de fugir. Mas a inveja de outros filósofos não dormia; deu rebate às suspeitas dos magistrados, e descobriu-se o roubo. Stroibus e Pítias foram tidos por aventureiros, mascarados com os nomes daqueles dois varões ilustres; Ptolomeu entregou-os à justiça com ordem de os passar logo ao carrasco. Foi então que interveio Herófilo, inventor da anatomia.

Capítulo IV Plus Ultra!


— Senhor, disse ele a Ptolomeu, tenho-me limitado até agora escalpelar cadáveres. Mas o cadáver dá-me a estrutura, não me dá a vida; dá-me os órgãos, não me dá as funções. Eu preciso das funções e da vida. — Que me dizes? redargüiu Ptolomeu. Queres estripar os ratos de Stroibus? — Não, senhor; não quero estripar os ratos. — Os cães? os gansos? as lebres?... — Nada; peço alguns homens vivos. — Vivos? não é possível... — Vou demonstrar que não só é possível, mas até legítimo e necessário. As prisões egípcias estão cheias de criminosos, e os criminosos ocupam, na escala humana, um grau muito inferior. Já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer homens, porque a razão e a virtude, que são os dois principais característicos humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral. Além disso, uma vez que têm de expiar com a morte os seus crimes, não é justo que prestem algum serviço à verdade e à ciência? A verdade é imortal; ela vale não só todos os ratos, como todos os delinqüentes do universo. Ptolomeu achou o raciocínio exato, e ordenou que os criminosos fossem entregues a Herófilo e seus discípulos. O grande anatomista agradeceu tão insigne obséquio, e começou a escalpelar os réus. Grande foi o assombro do povo; mas, salvo alguns pedidos verbais, não houve nenhuma manifestação contra a medida. Herófilo repetia o que dissera a Ptolomeu, acrescentando que a sujeição dos réus à experiência anatômica era até um modo indireto de servir à moral, visto que o terror do escalpelo impediria a prática de muitos crimes. Nenhum dos criminosos, ao deixar a prisão, suspeitava o destino científico que o esperava. Saíam um por um; às vezes dois a dois, ou três a três. Muitos deles, estendidos e atados à mesa da operação, não chegavam a desconfiar nada; imaginavam que era um novo gênero de execução sumária. Só quando os anatomistas definiam o objeto do estudo do dia, alçavam os ferros e davam os primeiros talhos, é que os desgraçados adquiriam a consciência da situação. Os que se lembravam de ter visto as experiências dos ratos, padeciam em dobro, porque a imaginação juntava à dor presente o espetáculo passado. Para conciliar os interesses da ciência com os impulsos da piedade, os réus não eram escalpelados à vista uns dos outros, mas sucessivamente. Quando vinham aos dois ou aos três, não ficavam em lugar donde os que esperavam pudessem ouvir os gritos do paciente, embora os gritos fossem muitas vezes abafados por meio de aparelhos; mas se eram abafados, não eram suprimidos, e em certos casos, o próprio objeto da experiência exigia que a emissão da voz fosse franca. Às vezes as operações eram simultâneas; mas então faziam-se em lugares distanciados. Tinham sido escalpelados cerca de cinqüenta réus, quando chegou a vez de Stroibus e Pítias. Vieram buscá-los; eles supuseram que era para a morte judiciária, e encomendaram-se aos deuses. De caminho, furtaram uns figos, e explicaram o caso alegando que era um impulso da fome; adiante, porém, subtraíram uma flauta, e essa outra ação não a puderam explicar satisfatoriamente. Todavia, a astúcia do larápio é infinita, e Stroibus, para justificar a ação, tentou extrair algumas notas do instrumento, enchendo de compaixão as pessoas que os viam passar, e não ignoravam a sorte que iam ter. A notícia desses dois novos delitos foi narrada por Herófilo, e abalou a todos os seus discípulos. — Realmente, disse o mestre, é um caso extraordinário, um caso lindíssimo. Antes do principal, examinemos aqui o outro ponto... O ponto era saber se o nervo do latrocínio residia na palma da mão ou na extremidade dos dedos; problema esse sugerido por um dos discípulos. Stroibus foi o primeiro sujeito à operação. Compreendeu tudo, desde que entrou na sala; e, como a natureza humana tem uma parte ínfima, pediu-lhes humildemente que poupassem a vida a um filósofo. Mas Herófilo, com um grande poder de dialética, disse-lhe mais ou menos isto: — Ou és um aventureiro ou o verdadeiro Stroibus; no primeiro caso, tens aqui o único meio para resgatar o crime de iludir a um príncipe esclarecido, presta-te ao escalpelo; no segundo caso, não deves ignorar que a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em comparação com o entendimento. Dito isto, começaram pela experiência das mãos, que produziu ótimos resultados, coligidos em livros, que se perderam com a queda dos Ptolomeus. Também as mãos de Pítias foram rasgadas e minuciosamente examinadas. Os infelizes berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos escalpelados antes deles. Diziam os alexandrinos que os ratos celebraram esse caso aflitivo e doloroso com danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados de igual destino, e outrossim, que nenhum dos convidados aceitou o convite, por sugestão de um cachorro, que lhes disse melancolicamente: — "Século virá em que a mesma coisa nos aconteça". Ao que retorquiu um rato: "Mas até lá, riamos!"