sábado, 23 de dezembro de 2017

FELIZ NATAL!




Vi Jesus Cristo Descer à Terra


Num meio-dia de fim de primavera 
Tive um sonho como uma fotografia. 
Vi Jesus Cristo descer à terra. 
Veio pela encosta de um monte 
Tornado outra vez menino, 
A correr e a rolar-se pela erva 
E a arrancar flores para as deitar fora 
E a rir de modo a ouvir-se de longe. 

Tinha fugido do céu. 
Era nosso demais para fingir 
De segunda pessoa da Trindade. 
No céu era tudo falso, tudo em desacordo 
Com flores e árvores e pedras. 
No céu tinha que estar sempre sério 
E de vez em quando de se tornar outra vez homem 
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer 
Com uma coroa toda à roda de espinhos 
E os pés espetados por um prego com cabeça, 
E até com um trapo à roda da cintura 
Como os pretos nas ilustrações. 
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe 
Como as outras crianças. 
O seu pai era duas pessoas 
Um velho chamado José, que era carpinteiro, 
E que não era pai dele; 
E o outro pai era uma pomba estúpida, 
A única pomba feia do mundo 
Porque não era do mundo nem era pomba. 
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. 
Não era mulher: era uma mala 
Em que ele tinha vindo do céu. 
E queriam que ele, que só nascera da mãe, 
E nunca tivera pai para amar com respeito, 
Pregasse a bondade e a justiça! 

Um dia que Deus estava a dormir 
E o Espírito Santo andava a voar, 
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três. 
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. 
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. 
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz 
E deixou-o pregado na cruz que há no céu 
E serve de modelo às outras. 
Depois fugiu para o sol 
E desceu pelo primeiro raio que apanhou. 
Hoje vive na minha aldeia comigo. 
É uma criança bonita de riso e natural. 
Limpa o nariz ao braço direito, 
Chapinha nas poças de água, 
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. 
Atira pedras aos burros, 
Rouba a fruta dos pomares 
E foge a chorar e a gritar dos cães. 
E, porque sabe que elas não gostam 
E que toda a gente acha graça, 
Corre atrás das raparigas pelas estradas 
Que vão em ranchos pela estradas 
com as bilhas às cabeças 
E levanta-lhes as saias. 

A mim ensinou-me tudo. 
Ensinou-me a olhar para as cousas. 
Aponta-me todas as cousas que há nas flores. 
Mostra-me como as pedras são engraçadas 
Quando a gente as tem na mão 
E olha devagar para elas. 

Diz-me muito mal de Deus. 
Diz que ele é um velho estúpido e doente, 
Sempre a escarrar no chão 
E a dizer indecências. 
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. 
E o Espírito Santo coça-se com o bico 
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. 
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica. 
Diz-me que Deus não percebe nada 
Das coisas que criou — 
"Se é que ele as criou, do que duvido" — 
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória, 
Mas os seres não cantam nada. 
Se cantassem seriam cantores. 
Os seres existem e mais nada, 
E por isso se chamam seres." 
E depois, cansados de dizer mal de Deus, 
O Menino Jesus adormece nos meus braços 
e eu levo-o ao colo para casa. 

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. 
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. 
Ele é o humano que é natural, 
Ele é o divino que sorri e que brinca. 
E por isso é que eu sei com toda a certeza 
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. 

E a criança tão humana que é divina 
É esta minha quotidiana vida de poeta, 
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta 
sempre, 
E que o meu mínimo olhar 
Me enche de sensação, 
E o mais pequeno som, seja do que for, 
Parece falar comigo. 

A Criança Nova que habita onde vivo 
Dá-me uma mão a mim 
E a outra a tudo que existe 
E assim vamos os três pelo caminho que houver, 
Saltando e cantando e rindo 
E gozando o nosso segredo comum 
Que é o de saber por toda a parte 
Que não há mistério no mundo 
E que tudo vale a pena. 

A Criança Eterna acompanha-me sempre. 
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando. 
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons 
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. 
Damo-nos tão bem um com o outro 
Na companhia de tudo 
Que nunca pensamos um no outro, 
Mas vivemos juntos e dois 
Com um acordo íntimo 
Como a mão direita e a esquerda. 

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas 
No degrau da porta de casa, 
Graves como convém a um deus e a um poeta, 
E como se cada pedra 
Fosse todo um universo 
E fosse por isso um grande perigo para ela 
Deixá-la cair no chão. 

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens 
E ele sorri, porque tudo é incrível. 
Ri dos reis e dos que não são reis, 
E tem pena de ouvir falar das guerras, 
E dos comércios, e dos navios 
Que ficam fumo no ar dos altos-mares. 
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade 
Que uma flor tem ao florescer 
E que anda com a luz do sol 
A variar os montes e os vales, 
E a fazer doer nos olhos os muros caiados. 

Depois ele adormece e eu deito-o. 
Levo-o ao colo para dentro de casa 
E deito-o, despindo-o lentamente 
E como seguindo um ritual muito limpo 
E todo materno até ele estar nu. 
Ele dorme dentro da minha alma 
E às vezes acorda de noite 
E brinca com os meus sonhos. 
Vira uns de pernas para o ar, 
Põe uns em cima dos outros 
E bate as palmas sozinho 
Sorrindo para o meu sono. 

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Quando eu morrer, filhinho, 
Seja eu a criança, o mais pequeno. 
Pega-me tu ao colo 
E leva-me para dentro da tua casa. 
Despe o meu ser cansado e humano 
E deita-me na tua cama. 
E conta-me histórias, caso eu acorde, 
Para eu tornar a adormecer. 
E dá-me sonhos teus para eu brincar 
Até que nasça qualquer dia 
Que tu sabes qual é. 

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Esta é a história do meu Menino Jesus. 
Por que razão que se perceba 
Não há de ser ela mais verdadeira 
Que tudo quanto os filósofos pensam 
E tudo quanto as religiões ensinam? 

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema VIII" 
Heterónimo de Fernando Pessoa 
A PERSONALIDADE DO MÊS DE DEZEMBRO


Millôr Fernandes


Poeminha de Millôr Fernandes relativo à árvore de natal.

Dava bolas, não se lembram?
Dava velas multicores
Que iluminavam, na sala,
Uma breve noite sem dores.
(…)
Mas será que interessa
Em nome de uns inocentes
Crescer árvores inventadas
Pela imaginação das gentes
Sem utilidade prática
Frutificando presentes
(Que brotavam das raízes)
Só pra pessoas felizes?
(…)
Era uma coisa maldita
Pois a praga da aflição
Crescia mais do que ela
E sem darmos atenção
Foram-se acabando as mudas
Não houve renovação
E cercada de fome e medo
Morreu toda a plantação.
Pode ser, eu não sei não,
Pois há ainda outra versão;
Ante a violência urbana
A árvore ficou tristonha
E como não era humana
Morreu mesmo é de vergonha.
(…)

Breve biografia do autor do poeminha:

    A vida de Millôr Fernandes decorreu entre 16 de agosto de 1923 e 27 de março de 2012, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Ele será lembrado como o maior humorista do século XX e começo deste em língua portuguesa (e não só). No entanto, o mês de novembro teria muita importância na sua faceta de jornalista e opositor ao regime militar brasileiro nas décadas de  60 e 70. De facto, em 1964, e poucos semanas após o golpe militar, fundou a revista quinzenal Pif-Paf, da qual participariam alguns dos principais nomes do humor brasileiro, como Ziraldo, Jaguar e Stanislaw Ponte Preta. A revista durou apenas oito números e foi fechada pelos militares. “Eu fiquei devendo 21 mil cruzeiros; meu valor na praça, então, era mais ou menos 500 cruzeiros mensais”, relembrou Millôr. O Pif-Paf foi uma espécie de embrião de um dos jornais alternativos mais espetaculares já publicados no Brasil: O Pasquim. Criado por Ziraldo e Jaguar e outros expoentes da intelectualidade da esquerda nacional, o semanário, obviamente, arrumou “encrencas” com a ditadura. Numa delas, em novembro de 1970, todo o staff do jornal foi preso por dois meses.
Em jeito de súmula biográfica de Millôr Fernandes, pode-se afirmar que ele não quis ser apenas o sujeito mais engraçado de sua rua, cidade e país. Isso era para ele insuficiente, atirou-se vitoriosamente a outras tarefas de comunicação tais como jornalismo (como já foi referido através das referências aos periódicos “Pif-Paf” e “Pasquim) poesia, desenho, pintura, tradução, dramaturgia e outras variantes da prometida intelectualidade. No entanto, a sua mais-valia estava (e está) na arte de dissecar os mistérios da essência humana, descarnando, pela palavra, a nudez putrefacta do dogma e do obscurantismo. A sua arma foi o humor que derrubou (e derruba) o já assente, limou (e lima) o que é dado como certo, furou (e fura) o definitivo.
     No seu texto “Apresentação (quase) desnecessária”, Millôr Fernandes traçou (e troçou) de si próprio este singelo esboço: “Chamo-me Millôr Fernandes, o que, já não sendo uma novidade, ainda não é uma elegia. Sou um homem de estatura mediana, idade mediana, inteligência mediana, razoável saúde. Nasci no Méier, subúrbio baixa-classe-média do Rio de Janeiro, atravessei socialmente esta cidade, e hoje vivo pegado ao Country Club – mas não se assustem que não sou sócio. Sou magro e tonto, vago e preocupado. Gostaria de ter a beleza física de um Allan Delon, o génio de um Sean O´Casey e a invitável simpatia do Pato Donald, mas como o destino poderia me ter dado a fúria negativa de um Goldwater, contento-me com o que sou. Só uma coisa me causa mau humor: o mau humor dos outros”.
    Aqui ficam alguns pensamentos de Millôr Fernandes:
 . «O desgraçado do cara que me meteu nas maiores encrencas da vida fui eu mesmo.»;
 . «Se é gostoso faz logo, amanhã pode ser ilegal.»;
 . «O mal deste país é que cada vez sobra mais mês no fim do dinheiro.»;
 . «O lar é o castelo do homem». Isso no tempo em que havia castelos, lares e homens.”
 . «A maior parte das mulheres aprende a conduzir acidentalmente.»;
 . «Se Deus me der força e saúde, hei-de provar que ele não existe»;
 . «Todos os homens nascem iguais. E, às vezes, até piores.»;
. «Chama-se de contenção conseguirmos fazer a raiva empatar com a educação.»;
 . «Um recém-nascido é a prova de que a natureza não desistiu do ser humano.»
 . «Círculo é uma linha que resolve ir dar uma volta.».