quarta-feira, 22 de março de 2023

DOS NOSSOS ALUNOS

 

A carta de amor que nunca te escrevi

 

Algumas considerações do autor

            Todos os livros têm uma história para além daquela que contam.

            Deixai que vos conte um segredo, estimado leitor: os livros ouvem, os livros veem, os livros pensam… os livros chegam até – muito raramente – a chorar em silêncio.

            Todos os livros têm uma história para além daquela que contam.

            Desgraçadamente, os livros não falam, os livros não escrevem – bem, nem todos – e, de modo inevitável, as nossas histórias acabam por morrer connosco, para jamais serem recordadas.

            Caro leitor, todos os livros têm uma história para além daquela que contam. E esta é a minha.

            É talvez presunçoso da minha parte assumir que nunca antes se viu uma aventura igual a esta que vos conto. Quero acreditar que todos os livros, como eu, chegam a amar (não que alguma vez tenha ouvido tal coisa).

            É também razoável assumir que tudo isto não tenha passado de um cruel delírio adocicado. Nesse caso, tereis de me perdoar, caro leitor, quaisquer dramatismos ou inflamações excessivas próprias de um verdadeiro amor inventado.

 

            Caro leitor, esta não é uma história de amor com um final feliz. Prossegui por vossa conta e risco.

 

            A carta de amor que nunca te escrevi

            - Para ti apenas

 

            Aqui, do alto desta velha estante que, pasma-te, me ultrapassa em anos, suspiro por ti todos os dias.

            Entalado entre um Shakespeare desalentado e um Molière empertigado, admiro como os frequentadores assíduos e não tão assíduos da biblioteca que nos serve de residência te pegam, te acariciam, te sorriem encantados, ao lerem o título que completa a tua capa perfeita, e não tão raras vezes te levam para ainda mais longe de mim. Aí, onde a minha visão não te alcança, descobrem-te mais do que alguma vez eu poderei – Ah, ironia vil, quem me dera poder ler-te!

            Resplandeces sempre que te escolhem de entre os afortunados volumes que partilham a estante contigo – sei como gostas da atenção – e quando te devolvem ao teu lugar, mais cheios de ti, mais completos, cúmplices de um segredo pelo qual arrancaria estoicamente metade das minhas páginas, a tua luz não esmorece por teres entregado parte de ti aos teus leitores, antes brilhas mais por viveres em mais um coração.

            Que posso eu, outrora como tu, livro apaixonante, a sensação do momento, agora não mais que um antiquado e poeirento drama de adornar a estante, contra essa tua vida que comove todos aqueles que de ti se aproximam?

            Não passo de um livro – velho, esquecido e desprezado, por sinal. Não sou merecedor sequer de um olhar curioso dos que vêm em busca de Hamlet.

            Não, permitir-me alimentar a esperança de que alguma vez tenhas olhado para mim, reparado em mim, seria permitir a minha autodestruição.

            Mas naquele dia (jubilante ou fatídico, conforme a perspetiva), naquele dia cometi o erro fatal que assombra os enamorados desventurados: deixei-me acreditar.

            Naquele dia, decerto te lembras, faziam 22 dias que te haviam levado.

            Eu estava, como era hábito meu – ou talvez já vício – a pensar em ti, quando surgiste nos braços da velha bibliotecária, juntamente com outros livros a que não dei importância. A anciã repunha os volumes recém-devolvidos nos seus devidos lugares de forma quase coreografada.

            Deu-se então um milagre: a senhora, dedicada mas por vezes distraída, fruto talvez da idade, restituiu o orgulhoso Molière à minha prateleira, porém, na vez da sua capa encouraçada e áspera, senti o roçagar suave de uma capa delicada: eras tu.

            O feliz incidente dera-se decerto porque a pobre mulher não reparou que estavas mesmo por debaixo do denso volume molieresco.

            É muito possível que tenhas sentido o tremor de nervosismo entusiasmado que me percorreu a espinha… eu estava aterrorizado na mais pura das alegrias.

            Eu tinha sonhado, durante uma eternidade, possibilidades infinitas, mas isto ultrapassava as minhas fantasias mais irrealistas. E agora, finalmente, inacreditavelmente, tinha-te tão perto de mim que conseguiria ler-te o título caso eu não estivesse encostado à tua contracapa.

            Durante dias – ou meses, ou anos – enviava-te declarações silenciosas e esperava ingenuamente que as ouvisses ou que, pelo menos, as imaginasses. O Tempo foi generoso e permitiu-me prolongar a magnífica ilusão de que encontraríamos o nosso “felizes para sempre” naquela miserável estante.

            Mas cedo percebi que o teu final feliz era diferente do meu. Sentia o desânimo a amarelecer as tuas páginas e o teu desespero ao sentires a tua lombada ser coberta de pó. Se silenciasse a minha felicidade egoísta, podia escutar o teu choro dilacerante: a cada momento que passava perdias o teu brilho e ansiavas pela tua estante como eu ansiara por ti.

            E isso magoou-me. É doloroso despertar de um sonho vívido apenas para nos apercebermos de que o nosso amor não é correspondido. Mais doloroso é encarar a vergonha do nosso arrebatamento. E mais doloroso ainda é fazer a coisa certa.

            Por isso, optei pelo papel momentâneo de vilão, fazendo as vezes de guarda alado desta alta torre que é o cárcere da figura delicada e mansa. Concedi-me uns momentos de fraqueza cobarde, fácil, mas foram menos vilezas que uma longa despedida sofrida e relutante, juro-to.

            E por fim, quando a ácida culpa de te prender a mim se tornou insuportável, recolhi todos os patéticos pedacinhos da minha honra desfeita e invoquei as forças que não tinha.

            Concentrei-me profundamente e experimentei abrir-me um pouco, alongar a minha capa.

            Não obtive sucesso.

            Como deves saber, os livros não se mexem… ou talvez eu não estivesse a tentar com genuína dedicação.

            Concentrei-me de novo, forçando-me a recordar o teu choro, o quão infeliz estavas, e ordenei firmemente que as minhas páginas se expandissem.

            Para meu desgosto, senti um leve movimento das páginas 276 e 279 e a minha lombada a distender-se, quase impercetivelmente, para depois relaxar novamente.

            Se continuasse, salvar-te-ia de uma existência vazia.

            Se continuasse, perder-te-ia para sempre.

            Tremendo – de esforço, claro está – comandei que as minhas páginas se esticassem mais um pouco, empurrando-te levemente com a minha capa. Avançaste ligeiramente, ficando com a lombada suspensa no abismo para além da prateleira.

            Sentia que ia partir a minha espinha, que as minhas frases desfar-se-iam em lágrimas e eu esvair-me-ia numa poça de tinta maldita e triste.

            Com um último impulso, caíste da estante e pude finalmente vislumbrar-te o título: “A carta de amor que nunca te escrevi”.

            Achei apropriado, sempre gostei de ironias trágicas.

            Apesar de seres leve, a tua queda brutal chamou a atenção da bibliotecária que, demasiado prontamente, te pegou, franzindo o sobrolho. Abanou a cabeça de modo reprovador e dirigiu-se à secção dos romances contemporâneos.

            Não sei se ouviste.

            Pareceu-me, porém, escutar um leve agradecimento sussurrado…

 

            Agora, do alto desta velha estante que me ultrapassa em anos, suspiro por ti todos os dias.

           

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