terça-feira, 14 de março de 2023

DOS NOSSOS ALUNOS

 

O senhor Maurício


O senhor Maurício nunca foi de romances, aliás, detestava todos os que tinha lido até então. Repugnava tais obras piegas e bajoujas de um amor incontrolável e excessivo, nem as considerava realistas. Lá no fundo, indagava-se se tal aversão provinha do estilo de vida que levava, porém o que exteriorizava não podia ser mais oposto a tal vulnerabilidade: o senhor Maurício era um velho solitário, bronco e rude que desprezava qualquer interação social, especialmente, expressões afetuosas. Já na sua juventude, até com a mãe demonstrara pouco apreço e, agora, segundo as vizinhas bisbilhoteiras, mal saía de casa. Vivera sempre sozinho à exceção de uns breves períodos que prefere não recordar, além do mais, gostava do macio e cómodo sossego do seu lar ou, pelo menos, convencia-se disso, pois silêncio era ocorrência rara lá. Maurício morava no rés-do-chão de um prédio antiquíssimo com mais de 50 anos, entre estalidos dos alicerces gastos e o ruído dos moradores de cima, quietude era realmente incomum, mas lá ia o senhor Maurício vivendo, naquela mediocridade a que se habituara ao longo dos anos. Apesar de agora aposentado, outrora já fora alguém de respeito e de enorme requinte, dizia ele às mesmas vizinhas. Na verdade, tinha sido professor universitário durante a maio parte da sua idade adulta e professor de quê mesmo, ironicamente, de literatura portuguesa, conhecida pelos seus grandes romancistas. Ui, mas que martírio era desviar-se de toda aquela prosa sentimental para poder desfrutar da magnífica obra de Eça de Queirós ou de Camilo Castelo Branco. Relutantemente, fora lendo tais histórias exacerbadas de amor que, de certo modo esquisito, lhe pareciam familiares, agora que brevemente as revisitava.

Ai, os bons anos 70. Ai, as memórias da mocidade alegre, onde foram elas? Ter-me-ei esquecido de tudo? Não, não, não pode ser. Lá resmungava umas desculpas culpando a idade como todos. Sabia, contudo, que tais lembranças lhe escapavam no esforço que fazia para as esquecer. Bem dizia o velho ditado, “afastamento, esquecimento", ou teria sido isto a mãe que lhe tinha dito, não interessa. Agora que revisitara este passado olvidado, estava intrigado nesta reflexão ensimesmada nas profundezas do mar da reminiscência. Que boa época para se ser jovem! A simplicidade da vida quotidiana e a minha mãe trabalhadora que sozinha me sustentou sem um dia de descanso. Mas porque é que me esquecera de tais recordações? Lembro-me do quão feliz a minha mãe ficara quando completei o 5º ano do liceu, mas estava lá mais alguém… Eu juro que alguém mais estava lá. Ai a minha cabeça. Ah, pois, foi, era ela, ela com quem eu desperdicei os melhores anos da minha vida. Eu tanto a amara. Ai, Deus. Ainda me lembro de como fora, éramos ambos jovens a iniciar a vida, ela queria ser professora como eu e foi com ela que segui para o ensino superior. Comprámos esta mesma casa, na altura, novinha em folha. Era, de facto, muito luminosa. A luz que penetrava pelas vidraças embebia o ar numa jubilosa tonalidade doirada. Eu nem muito a apreciava, mas ela sempre gostou da casa, dizia que o barulho recorrente dos vizinhos a acalmava como uma terapia. Aquele estrépito constante somente me enervava, porém nós não pensávamos ficar cá muito tempo. Ela queria ir morar para o campo, o ambiente bucólico sempre a cativou e eu, enfeitiçado por ela, concordava cegamente. Entretanto, estávamos aqui presos até ao final do curso, ambos cursávamos literatura, eu era mais de lirismo e ela de romances. Nunca me enamorei dos romanticismos, mas, por ela, lia até um dicionário com prazer. Recordo-me tão bem do seu particular fascínio por finais trágicos de romances, “Amor de Perdição” era o seu predileto. Como pude eu ignorar estes sinais e equivocar-me desta maneira? Olhando para trás, era tudo imensamente óbvio. Ela própria me aprisionara numa tragédia infernal! Bem que chegou um dia, o dia, esse dia no qual adentrei pela porta apenas para não encontrar ninguém em casa, somente uma carta endereçada a mim pousada plenamente na mesa do salão. Nesse momento, já o jovem Maurício pressentia uma agonia a entranhar-se, inevitavelmente, no seu corpo, como uma maligna chama que se alastra em palha seca. Devagar, aproximara-se da mesa e, já com o braço levemente trémulo, abrira a carta. Uma única palavra estava escrita, um único verbo para ser preciso, “Parti”. Reconhecera de imediato a caligrafia, era a letra dela, a letra delicada com que ela lhe escrevia, na adolescência. Bastou esse simples vocábulo para levar um homem que raramente se comovera a um choro descomunal. Durante breves instantes, entendera o sofrimento amoroso desmedido que os românticos tanto retratavam, fora tudo quase como um grande presságio que constantemente descartou. A paixão cega levara-o à ruína emocional. O sol então, escondera-se e o ar adquiriu um tom soturno e lúgubre do qual, dentro daquela casa, jamais se livraria.

Dias passavam, semanas, meses, e não sabia como reagir, perdeu um ano do curso, todavia já não lhe importava. Estava ressequido e triste, recluso num transe contínuo de abulia. Por fim lá terminou os estudos, mas não com a estamina e alegria de quando com ela. Nada era igual sem ela. Por uma vez, as vizinhas provaram-se úteis quando finalmente se enchera de coragem para lhes questionar se sabiam de algo sobre ela ou se tinham visto algo de incomum antes de ela partir. Pouco sabiam, diziam elas, ainda assim o que relatavam negava tal alegação. Lembravam-se de ver um homem desconhecido, descrição completa e tudo: alto, louro e esguio. Esse homem vinha - a visitar assiduamente, sempre no sigilo. Maurício, ao saber tal informação, pediu-lhes que parassem de recontar a história. Já continha visivelmente as lágrimas, porém não se ia deixar ceder ao choro, uma vez mais. Afinal, a própria mãe lhe dissera sempre que o homem não chora. “Ai, mas sabe como se diz, menino Maurício, entre marido e mulher não se mete a colher, além do mais eu podia ter visto mal, sabe que eu sem óculos não vejo nada”. Desculpas patéticas. Internamente, insultava aquelas velhas metediças que nem para avisar lhe serviram, mantinha, contudo, uma imagem calma e plena, agradecia cordialmente às vizinhas e despedia-se. E assim se manteve, nesta dormência imutável que, com a passagem dos anos, se manifestava mais e mais em ódio perante a vida.

Desde então, jamais apreciara romances, todos o faziam lembrar dela. A partir daquele dia fatídico, o senhor Maurício nunca mais foi o mesmo. Obscureceu como o entardecer e no seu coração surgiu uma ferida que ainda hoje permanece aberta e a esvair-se em dor. O que outrora fora um rapaz jovial e alegre tornou-se num velho amargurado e frio. A sua alma apodreceu e foi enegrecendo lentamente conforme as paredes da casa que, um dia, já habitaram juntos. Nesse dia, prometeu-se que nunca voltaria a apaixonar-se assim, promessa essa que viria a cumprir até ao fim dos seus dias.

 

 

Trabalho realizado por:

Miguel Santos Correia

Nº18  12ºA

 

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