O senhor Maurício
O senhor Maurício nunca foi de
romances, aliás, detestava todos os que tinha lido até então. Repugnava tais
obras piegas e bajoujas de um amor incontrolável e excessivo, nem as
considerava realistas. Lá no fundo, indagava-se se tal aversão provinha do
estilo de vida que levava, porém o que exteriorizava não podia ser mais oposto
a tal vulnerabilidade: o senhor Maurício era um velho solitário, bronco e rude
que desprezava qualquer interação social, especialmente, expressões afetuosas.
Já na sua juventude, até com a mãe demonstrara pouco apreço e, agora, segundo as
vizinhas bisbilhoteiras, mal saía de casa. Vivera sempre sozinho à exceção de
uns breves períodos que prefere não recordar, além do mais, gostava do macio e
cómodo sossego do seu lar ou, pelo menos, convencia-se disso, pois silêncio era
ocorrência rara lá. Maurício morava no rés-do-chão de um prédio antiquíssimo
com mais de 50 anos, entre estalidos dos alicerces gastos e o ruído dos
moradores de cima, quietude era realmente incomum, mas lá ia o senhor Maurício
vivendo, naquela mediocridade a que se habituara ao longo dos anos. Apesar de
agora aposentado, outrora já fora alguém de respeito e de enorme requinte,
dizia ele às mesmas vizinhas. Na verdade, tinha sido professor universitário
durante a maio parte da sua idade adulta e professor de quê mesmo, ironicamente,
de literatura portuguesa, conhecida pelos seus grandes romancistas. Ui, mas que
martírio era desviar-se de toda aquela prosa sentimental para poder desfrutar
da magnífica obra de Eça de Queirós ou de Camilo Castelo Branco.
Relutantemente, fora lendo tais histórias exacerbadas de amor que, de certo
modo esquisito, lhe pareciam familiares, agora que brevemente as revisitava.
Ai, os bons anos 70. Ai, as memórias
da mocidade alegre, onde foram elas? Ter-me-ei esquecido de tudo? Não, não, não
pode ser. Lá resmungava umas desculpas culpando a idade como todos. Sabia,
contudo, que tais lembranças lhe escapavam no esforço que fazia para as
esquecer. Bem dizia o velho ditado, “afastamento, esquecimento", ou teria
sido isto a mãe que lhe tinha dito, não interessa. Agora que revisitara este
passado olvidado, estava intrigado nesta reflexão ensimesmada nas profundezas
do mar da reminiscência. Que boa época para se ser jovem! A simplicidade da
vida quotidiana e a minha mãe trabalhadora que sozinha me sustentou sem um dia
de descanso. Mas porque é que me esquecera de tais recordações? Lembro-me do
quão feliz a minha mãe ficara quando completei o 5º ano do liceu, mas estava lá
mais alguém… Eu juro que alguém mais estava lá. Ai a minha cabeça. Ah, pois,
foi, era ela, ela com quem eu desperdicei os melhores anos da minha vida. Eu
tanto a amara. Ai, Deus. Ainda me lembro de como fora, éramos ambos jovens a
iniciar a vida, ela queria ser professora como eu e foi com ela que segui para
o ensino superior. Comprámos esta mesma casa, na altura, novinha em folha. Era,
de facto, muito luminosa. A luz que penetrava pelas vidraças embebia o ar numa
jubilosa tonalidade doirada. Eu nem muito a apreciava, mas ela sempre gostou da
casa, dizia que o barulho recorrente dos vizinhos a acalmava como uma terapia.
Aquele estrépito constante somente me enervava, porém nós não pensávamos ficar
cá muito tempo. Ela queria ir morar para o campo, o ambiente bucólico sempre a
cativou e eu, enfeitiçado por ela, concordava cegamente. Entretanto, estávamos
aqui presos até ao final do curso, ambos cursávamos literatura, eu era mais de
lirismo e ela de romances. Nunca me enamorei dos romanticismos, mas, por ela,
lia até um dicionário com prazer. Recordo-me tão bem do seu particular fascínio
por finais trágicos de romances, “Amor de Perdição” era o seu predileto. Como
pude eu ignorar estes sinais e equivocar-me desta maneira? Olhando para trás,
era tudo imensamente óbvio. Ela própria me aprisionara numa tragédia infernal!
Bem que chegou um dia, o dia, esse dia no qual adentrei pela porta apenas para
não encontrar ninguém em casa, somente uma carta endereçada a mim pousada
plenamente na mesa do salão. Nesse momento, já o jovem Maurício pressentia uma
agonia a entranhar-se, inevitavelmente, no seu corpo, como uma maligna chama
que se alastra em palha seca. Devagar, aproximara-se da mesa e, já com o braço
levemente trémulo, abrira a carta. Uma única palavra estava escrita, um único
verbo para ser preciso, “Parti”. Reconhecera de imediato a caligrafia, era a letra
dela, a letra delicada com que ela lhe escrevia, na adolescência. Bastou esse
simples vocábulo para levar um homem que raramente se comovera a um choro
descomunal. Durante breves instantes, entendera o sofrimento amoroso desmedido
que os românticos tanto retratavam, fora tudo quase como um grande presságio
que constantemente descartou. A paixão cega levara-o à ruína emocional. O sol
então, escondera-se e o ar adquiriu um tom soturno e lúgubre do qual, dentro
daquela casa, jamais se livraria.
Dias passavam, semanas, meses, e não
sabia como reagir, perdeu um ano do curso, todavia já não lhe importava. Estava
ressequido e triste, recluso num transe contínuo de abulia. Por fim lá terminou
os estudos, mas não com a estamina e alegria de quando com ela. Nada era igual
sem ela. Por uma vez, as vizinhas provaram-se úteis quando finalmente se
enchera de coragem para lhes questionar se sabiam de algo sobre ela ou se
tinham visto algo de incomum antes de ela partir. Pouco sabiam, diziam elas,
ainda assim o que relatavam negava tal alegação. Lembravam-se de ver um homem
desconhecido, descrição completa e tudo: alto, louro e esguio. Esse homem vinha
- a visitar assiduamente, sempre no
sigilo. Maurício, ao saber tal informação, pediu-lhes que parassem de recontar
a história. Já continha visivelmente as lágrimas, porém não se ia deixar ceder
ao choro, uma vez mais. Afinal, a própria mãe lhe dissera sempre que o homem
não chora. “Ai, mas sabe como se diz, menino Maurício, entre marido e mulher
não se mete a colher, além do mais eu podia ter visto mal, sabe que eu sem
óculos não vejo nada”. Desculpas patéticas. Internamente, insultava aquelas
velhas metediças que nem para avisar lhe serviram, mantinha, contudo, uma
imagem calma e plena, agradecia cordialmente às vizinhas e despedia-se. E assim
se manteve, nesta dormência imutável que, com a passagem dos anos, se
manifestava mais e mais em ódio perante a vida.
Desde então, jamais apreciara
romances, todos o faziam lembrar dela. A partir daquele dia fatídico, o senhor
Maurício nunca mais foi o mesmo. Obscureceu como o entardecer e no seu coração
surgiu uma ferida que ainda hoje permanece aberta e a esvair-se em dor. O que
outrora fora um rapaz jovial e alegre tornou-se num velho amargurado e frio. A
sua alma apodreceu e foi enegrecendo lentamente conforme as paredes da casa
que, um dia, já habitaram juntos. Nesse dia, prometeu-se que nunca voltaria a apaixonar-se
assim, promessa essa que viria a cumprir até ao fim dos seus dias.
Trabalho realizado por:
Miguel Santos Correia
Nº18
12ºA
Sem comentários:
Enviar um comentário