A
carta de amor que nunca te escrevi
Algumas considerações do autor
Todos
os livros têm uma história para além daquela que contam.
Deixai
que vos conte um segredo, estimado leitor: os livros ouvem, os livros veem, os
livros pensam… os livros chegam até – muito raramente – a chorar em silêncio.
Todos
os livros têm uma história para além daquela que contam.
Desgraçadamente,
os livros não falam, os livros não escrevem – bem, nem todos – e, de modo
inevitável, as nossas histórias acabam por morrer connosco, para jamais serem
recordadas.
Caro
leitor, todos os livros têm uma história para além daquela que contam. E esta é
a minha.
É
talvez presunçoso da minha parte assumir que nunca antes se viu uma aventura
igual a esta que vos conto. Quero acreditar que todos os livros, como eu,
chegam a amar (não que alguma vez tenha ouvido tal coisa).
É
também razoável assumir que tudo isto não tenha passado de um cruel delírio
adocicado. Nesse caso, tereis de me perdoar, caro leitor, quaisquer dramatismos
ou inflamações excessivas próprias de um verdadeiro amor inventado.
Caro
leitor, esta não é uma história de amor com um final feliz. Prossegui por vossa
conta e risco.
A
carta de amor que nunca te escrevi
-
Para ti apenas
Aqui,
do alto desta velha estante que, pasma-te, me ultrapassa em anos, suspiro por
ti todos os dias.
Entalado
entre um Shakespeare desalentado e um Molière empertigado, admiro como os
frequentadores assíduos e não tão assíduos da biblioteca que nos serve de
residência te pegam, te acariciam, te sorriem encantados, ao lerem o título que
completa a tua capa perfeita, e não tão raras vezes te levam para ainda mais
longe de mim. Aí, onde a minha visão não te alcança, descobrem-te mais do que
alguma vez eu poderei – Ah, ironia vil, quem me dera poder ler-te!
Resplandeces
sempre que te escolhem de entre os afortunados volumes que partilham a estante
contigo – sei como gostas da atenção – e quando te devolvem ao teu lugar, mais
cheios de ti, mais completos, cúmplices de um segredo pelo qual arrancaria
estoicamente metade das minhas páginas, a tua luz não esmorece por teres
entregado parte de ti aos teus leitores, antes brilhas mais por viveres em mais
um coração.
Que
posso eu, outrora como tu, livro apaixonante, a sensação do momento, agora não
mais que um antiquado e poeirento drama de adornar a estante, contra essa tua
vida que comove todos aqueles que de ti se aproximam?
Não
passo de um livro – velho, esquecido e desprezado, por sinal. Não sou merecedor
sequer de um olhar curioso dos que vêm em busca de Hamlet.
Não,
permitir-me alimentar a esperança de que alguma vez tenhas olhado para mim,
reparado em mim, seria permitir a minha autodestruição.
Mas
naquele dia (jubilante ou fatídico, conforme a perspetiva), naquele dia cometi
o erro fatal que assombra os enamorados desventurados: deixei-me acreditar.
Naquele
dia, decerto te lembras, faziam 22 dias que te haviam levado.
Eu
estava, como era hábito meu – ou talvez já vício – a pensar em ti, quando
surgiste nos braços da velha bibliotecária, juntamente com outros livros a que
não dei importância. A anciã repunha os volumes recém-devolvidos nos seus
devidos lugares de forma quase coreografada.
Deu-se
então um milagre: a senhora, dedicada mas por vezes distraída, fruto talvez da
idade, restituiu o orgulhoso Molière à minha prateleira, porém, na vez da sua
capa encouraçada e áspera, senti o roçagar suave de uma capa delicada: eras tu.
O
feliz incidente dera-se decerto porque a pobre mulher não reparou que estavas
mesmo por debaixo do denso volume molieresco.
É
muito possível que tenhas sentido o tremor de nervosismo entusiasmado que me
percorreu a espinha… eu estava aterrorizado na mais pura das alegrias.
Eu
tinha sonhado, durante uma eternidade, possibilidades infinitas, mas isto
ultrapassava as minhas fantasias mais irrealistas. E agora, finalmente,
inacreditavelmente, tinha-te tão perto de mim que conseguiria ler-te o título
caso eu não estivesse encostado à tua contracapa.
Durante
dias – ou meses, ou anos – enviava-te declarações silenciosas e esperava
ingenuamente que as ouvisses ou que, pelo menos, as imaginasses. O Tempo foi
generoso e permitiu-me prolongar a magnífica ilusão de que encontraríamos o
nosso “felizes para sempre” naquela miserável estante.
Mas
cedo percebi que o teu final feliz era diferente do meu. Sentia o desânimo a
amarelecer as tuas páginas e o teu desespero ao sentires a tua lombada ser
coberta de pó. Se silenciasse a minha felicidade egoísta, podia escutar o teu
choro dilacerante: a cada momento que passava perdias o teu brilho e ansiavas
pela tua estante como eu ansiara por ti.
E
isso magoou-me. É doloroso despertar de um sonho vívido apenas para nos
apercebermos de que o nosso amor não é correspondido. Mais doloroso é encarar a
vergonha do nosso arrebatamento. E mais doloroso ainda é fazer a coisa certa.
Por
isso, optei pelo papel momentâneo de vilão, fazendo as vezes de guarda alado
desta alta torre que é o cárcere da figura delicada e mansa. Concedi-me uns
momentos de fraqueza cobarde, fácil, mas foram menos vilezas que uma longa
despedida sofrida e relutante, juro-to.
E
por fim, quando a ácida culpa de te prender a mim se tornou insuportável,
recolhi todos os patéticos pedacinhos da minha honra desfeita e invoquei as
forças que não tinha.
Concentrei-me
profundamente e experimentei abrir-me um pouco, alongar a minha capa.
Não
obtive sucesso.
Como
deves saber, os livros não se mexem… ou talvez eu não estivesse a tentar com
genuína dedicação.
Concentrei-me
de novo, forçando-me a recordar o teu choro, o quão infeliz estavas, e ordenei
firmemente que as minhas páginas se expandissem.
Para
meu desgosto, senti um leve movimento das páginas 276 e 279 e a minha lombada a
distender-se, quase impercetivelmente, para depois relaxar novamente.
Se
continuasse, salvar-te-ia de uma existência vazia.
Se
continuasse, perder-te-ia para sempre.
Tremendo
– de esforço, claro está – comandei que as minhas páginas se esticassem mais um
pouco, empurrando-te levemente com a minha capa. Avançaste ligeiramente,
ficando com a lombada suspensa no abismo para além da prateleira.
Sentia
que ia partir a minha espinha, que as minhas frases desfar-se-iam em lágrimas e
eu esvair-me-ia numa poça de tinta maldita e triste.
Com
um último impulso, caíste da estante e pude finalmente vislumbrar-te o título:
“A carta de amor que nunca te escrevi”.
Achei
apropriado, sempre gostei de ironias trágicas.
Apesar
de seres leve, a tua queda brutal chamou a atenção da bibliotecária que,
demasiado prontamente, te pegou, franzindo o sobrolho. Abanou a cabeça de modo
reprovador e dirigiu-se à secção dos romances contemporâneos.
Não
sei se ouviste.
Pareceu-me,
porém, escutar um leve agradecimento sussurrado…
Agora,
do alto desta velha estante que me ultrapassa em anos, suspiro por ti todos os
dias.