sábado, 23 de dezembro de 2017

FELIZ NATAL!




Vi Jesus Cristo Descer à Terra


Num meio-dia de fim de primavera 
Tive um sonho como uma fotografia. 
Vi Jesus Cristo descer à terra. 
Veio pela encosta de um monte 
Tornado outra vez menino, 
A correr e a rolar-se pela erva 
E a arrancar flores para as deitar fora 
E a rir de modo a ouvir-se de longe. 

Tinha fugido do céu. 
Era nosso demais para fingir 
De segunda pessoa da Trindade. 
No céu era tudo falso, tudo em desacordo 
Com flores e árvores e pedras. 
No céu tinha que estar sempre sério 
E de vez em quando de se tornar outra vez homem 
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer 
Com uma coroa toda à roda de espinhos 
E os pés espetados por um prego com cabeça, 
E até com um trapo à roda da cintura 
Como os pretos nas ilustrações. 
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe 
Como as outras crianças. 
O seu pai era duas pessoas 
Um velho chamado José, que era carpinteiro, 
E que não era pai dele; 
E o outro pai era uma pomba estúpida, 
A única pomba feia do mundo 
Porque não era do mundo nem era pomba. 
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. 
Não era mulher: era uma mala 
Em que ele tinha vindo do céu. 
E queriam que ele, que só nascera da mãe, 
E nunca tivera pai para amar com respeito, 
Pregasse a bondade e a justiça! 

Um dia que Deus estava a dormir 
E o Espírito Santo andava a voar, 
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três. 
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. 
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. 
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz 
E deixou-o pregado na cruz que há no céu 
E serve de modelo às outras. 
Depois fugiu para o sol 
E desceu pelo primeiro raio que apanhou. 
Hoje vive na minha aldeia comigo. 
É uma criança bonita de riso e natural. 
Limpa o nariz ao braço direito, 
Chapinha nas poças de água, 
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. 
Atira pedras aos burros, 
Rouba a fruta dos pomares 
E foge a chorar e a gritar dos cães. 
E, porque sabe que elas não gostam 
E que toda a gente acha graça, 
Corre atrás das raparigas pelas estradas 
Que vão em ranchos pela estradas 
com as bilhas às cabeças 
E levanta-lhes as saias. 

A mim ensinou-me tudo. 
Ensinou-me a olhar para as cousas. 
Aponta-me todas as cousas que há nas flores. 
Mostra-me como as pedras são engraçadas 
Quando a gente as tem na mão 
E olha devagar para elas. 

Diz-me muito mal de Deus. 
Diz que ele é um velho estúpido e doente, 
Sempre a escarrar no chão 
E a dizer indecências. 
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. 
E o Espírito Santo coça-se com o bico 
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. 
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica. 
Diz-me que Deus não percebe nada 
Das coisas que criou — 
"Se é que ele as criou, do que duvido" — 
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória, 
Mas os seres não cantam nada. 
Se cantassem seriam cantores. 
Os seres existem e mais nada, 
E por isso se chamam seres." 
E depois, cansados de dizer mal de Deus, 
O Menino Jesus adormece nos meus braços 
e eu levo-o ao colo para casa. 

............................................................................. 

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. 
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. 
Ele é o humano que é natural, 
Ele é o divino que sorri e que brinca. 
E por isso é que eu sei com toda a certeza 
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. 

E a criança tão humana que é divina 
É esta minha quotidiana vida de poeta, 
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta 
sempre, 
E que o meu mínimo olhar 
Me enche de sensação, 
E o mais pequeno som, seja do que for, 
Parece falar comigo. 

A Criança Nova que habita onde vivo 
Dá-me uma mão a mim 
E a outra a tudo que existe 
E assim vamos os três pelo caminho que houver, 
Saltando e cantando e rindo 
E gozando o nosso segredo comum 
Que é o de saber por toda a parte 
Que não há mistério no mundo 
E que tudo vale a pena. 

A Criança Eterna acompanha-me sempre. 
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando. 
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons 
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. 
Damo-nos tão bem um com o outro 
Na companhia de tudo 
Que nunca pensamos um no outro, 
Mas vivemos juntos e dois 
Com um acordo íntimo 
Como a mão direita e a esquerda. 

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas 
No degrau da porta de casa, 
Graves como convém a um deus e a um poeta, 
E como se cada pedra 
Fosse todo um universo 
E fosse por isso um grande perigo para ela 
Deixá-la cair no chão. 

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens 
E ele sorri, porque tudo é incrível. 
Ri dos reis e dos que não são reis, 
E tem pena de ouvir falar das guerras, 
E dos comércios, e dos navios 
Que ficam fumo no ar dos altos-mares. 
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade 
Que uma flor tem ao florescer 
E que anda com a luz do sol 
A variar os montes e os vales, 
E a fazer doer nos olhos os muros caiados. 

Depois ele adormece e eu deito-o. 
Levo-o ao colo para dentro de casa 
E deito-o, despindo-o lentamente 
E como seguindo um ritual muito limpo 
E todo materno até ele estar nu. 
Ele dorme dentro da minha alma 
E às vezes acorda de noite 
E brinca com os meus sonhos. 
Vira uns de pernas para o ar, 
Põe uns em cima dos outros 
E bate as palmas sozinho 
Sorrindo para o meu sono. 

...................................................................... 

Quando eu morrer, filhinho, 
Seja eu a criança, o mais pequeno. 
Pega-me tu ao colo 
E leva-me para dentro da tua casa. 
Despe o meu ser cansado e humano 
E deita-me na tua cama. 
E conta-me histórias, caso eu acorde, 
Para eu tornar a adormecer. 
E dá-me sonhos teus para eu brincar 
Até que nasça qualquer dia 
Que tu sabes qual é. 

..................................................................... 

Esta é a história do meu Menino Jesus. 
Por que razão que se perceba 
Não há de ser ela mais verdadeira 
Que tudo quanto os filósofos pensam 
E tudo quanto as religiões ensinam? 

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema VIII" 
Heterónimo de Fernando Pessoa 
A PERSONALIDADE DO MÊS DE DEZEMBRO


Millôr Fernandes


Poeminha de Millôr Fernandes relativo à árvore de natal.

Dava bolas, não se lembram?
Dava velas multicores
Que iluminavam, na sala,
Uma breve noite sem dores.
(…)
Mas será que interessa
Em nome de uns inocentes
Crescer árvores inventadas
Pela imaginação das gentes
Sem utilidade prática
Frutificando presentes
(Que brotavam das raízes)
Só pra pessoas felizes?
(…)
Era uma coisa maldita
Pois a praga da aflição
Crescia mais do que ela
E sem darmos atenção
Foram-se acabando as mudas
Não houve renovação
E cercada de fome e medo
Morreu toda a plantação.
Pode ser, eu não sei não,
Pois há ainda outra versão;
Ante a violência urbana
A árvore ficou tristonha
E como não era humana
Morreu mesmo é de vergonha.
(…)

Breve biografia do autor do poeminha:

    A vida de Millôr Fernandes decorreu entre 16 de agosto de 1923 e 27 de março de 2012, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Ele será lembrado como o maior humorista do século XX e começo deste em língua portuguesa (e não só). No entanto, o mês de novembro teria muita importância na sua faceta de jornalista e opositor ao regime militar brasileiro nas décadas de  60 e 70. De facto, em 1964, e poucos semanas após o golpe militar, fundou a revista quinzenal Pif-Paf, da qual participariam alguns dos principais nomes do humor brasileiro, como Ziraldo, Jaguar e Stanislaw Ponte Preta. A revista durou apenas oito números e foi fechada pelos militares. “Eu fiquei devendo 21 mil cruzeiros; meu valor na praça, então, era mais ou menos 500 cruzeiros mensais”, relembrou Millôr. O Pif-Paf foi uma espécie de embrião de um dos jornais alternativos mais espetaculares já publicados no Brasil: O Pasquim. Criado por Ziraldo e Jaguar e outros expoentes da intelectualidade da esquerda nacional, o semanário, obviamente, arrumou “encrencas” com a ditadura. Numa delas, em novembro de 1970, todo o staff do jornal foi preso por dois meses.
Em jeito de súmula biográfica de Millôr Fernandes, pode-se afirmar que ele não quis ser apenas o sujeito mais engraçado de sua rua, cidade e país. Isso era para ele insuficiente, atirou-se vitoriosamente a outras tarefas de comunicação tais como jornalismo (como já foi referido através das referências aos periódicos “Pif-Paf” e “Pasquim) poesia, desenho, pintura, tradução, dramaturgia e outras variantes da prometida intelectualidade. No entanto, a sua mais-valia estava (e está) na arte de dissecar os mistérios da essência humana, descarnando, pela palavra, a nudez putrefacta do dogma e do obscurantismo. A sua arma foi o humor que derrubou (e derruba) o já assente, limou (e lima) o que é dado como certo, furou (e fura) o definitivo.
     No seu texto “Apresentação (quase) desnecessária”, Millôr Fernandes traçou (e troçou) de si próprio este singelo esboço: “Chamo-me Millôr Fernandes, o que, já não sendo uma novidade, ainda não é uma elegia. Sou um homem de estatura mediana, idade mediana, inteligência mediana, razoável saúde. Nasci no Méier, subúrbio baixa-classe-média do Rio de Janeiro, atravessei socialmente esta cidade, e hoje vivo pegado ao Country Club – mas não se assustem que não sou sócio. Sou magro e tonto, vago e preocupado. Gostaria de ter a beleza física de um Allan Delon, o génio de um Sean O´Casey e a invitável simpatia do Pato Donald, mas como o destino poderia me ter dado a fúria negativa de um Goldwater, contento-me com o que sou. Só uma coisa me causa mau humor: o mau humor dos outros”.
    Aqui ficam alguns pensamentos de Millôr Fernandes:
 . «O desgraçado do cara que me meteu nas maiores encrencas da vida fui eu mesmo.»;
 . «Se é gostoso faz logo, amanhã pode ser ilegal.»;
 . «O mal deste país é que cada vez sobra mais mês no fim do dinheiro.»;
 . «O lar é o castelo do homem». Isso no tempo em que havia castelos, lares e homens.”
 . «A maior parte das mulheres aprende a conduzir acidentalmente.»;
 . «Se Deus me der força e saúde, hei-de provar que ele não existe»;
 . «Todos os homens nascem iguais. E, às vezes, até piores.»;
. «Chama-se de contenção conseguirmos fazer a raiva empatar com a educação.»;
 . «Um recém-nascido é a prova de que a natureza não desistiu do ser humano.»
 . «Círculo é uma linha que resolve ir dar uma volta.».

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

A PERSONALIDADE DO MÊS 

Professor Doutor Sobrinho Simões


Os nossos alunos do 11ºA foram convidados a elaborar as notas biográficas sobre a nossa personalidade do mês.

Publicamos o trabalho de alguns deles e que foi tão bem apresentado para iniciar a palestra proferida no dia 10 de outubro.


Nota biográfica breve e mais informal:
Professor Doutor Manuel Sobrinho Simões é cientista. Ele diz que não é um bom cientista, e que não é por falsa modéstia que o diz, mas por ser a verdade. É, seguramente, um dos maiores especialistas do mundo em cancro da tiróide
Se tiver de definir o que mais gosta de fazer é ensinar. Ensina pelo mundo fora, da China à Turquia, da Rússia aos Estados Unidos. Por isso, talvez se sinta mais confortável se pensarmos nele como um educador. Até porque formar uma escola, deixar uma escola foi, é, a ambição da sua vida. O IPATIMUP (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto) é, por isso, o projeto da sua vida

Nota biográfica sobre percurso curricular:
No ano letivo de 1957- 1958- matriculou-se no liceu Alexandre Herculano 
Professor Doutor Manuel Sobrinho Simões completou a licenciatura na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 1971. 
 Durante a licenciatura desenvolveu um grande interesse pelo domínio da Patologia, influenciado por alguns dos seus professores, como Daniel Serrão, tendo sido nomeado Assistente Eventual da disciplina de Anatomia Patológica, lugar que ocupou até  Setembro de 1974. 
Em paralelo com a componente escolar, foi campeão universitário de Pingue -pongue 
Anos mais tarde, em 1979, doutorou-se em Patologia pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, apresentando a dissertação "Carcinoma oculto de Tireóide - Proposta de interpretação biopatológica" tendo sido aprovado por unanimidade, com distinção e louvor. .  
Entre Outubro de 1979 e Julho de 1980 fez o pós-doutoramento em Oslo, submetido ao tema "Microscopia Eletrónica", alcançando o reconhecimento internacional.
No regresso a Portugal, em Outubro de 1980, ascendeu ao cargo de Professor Associado da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto sendo mais tarde nomeado Professor Catedrático de Patologia. 
Em 1989 criou o IPATIMUP (Instituto de Patologia e Imunologia Molecular e Celular da Universidade do Porto), unidade de investigação muito prestigiada que dirige  e foi classificada como excelente na última avaliação internacional levada a cabo pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e constitui um dos três laboratórios europeus acreditados pelo colégio americano de patologistas.  
É autor e co-autor de centenas de artigos editados em publicações nacionais e internacionais.

Em 2015 foi eleito o patologista mais influente do mundo pela revista britânica The Patologista e recebeu um voto de louvor do Conselho Geral da Universidade do Porto. 

Nota biográfica breve sobre vida pessoal   
 Manuel Sobrinho Simões gosta de passar os tempos livres com a família, muitas vezes em Moledo, onde possui uma casa de férias. 
Entre os seus passatempos favoritos contam-se a leitura, o cinema, programas televisivos como a série norte-americana House. M. D., passeios de bicicleta pelo Parque da Cidade. 

 Acompanha também o Futebol Clube do Porto,, agora, um pouco mais à distância do que durante a sua juventude, fase da vida em que era sócio e via regularmente jogos de várias modalidades. 

Textos ditos por Ana Cruz, Mariana Rocha e Daniel Talveira

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Bem-vindos ao novo ano letivo 2017/2018!
   
    O Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, outubro,  surge, este ano subordinado ao tema "Ligando Comunidades e Culturas".
    A nossa biblioteca iniciou as atividades deste mês com uma palestra proferida pelo cientista e professor português, o Professor Doutor Sobrinho Simões, no dia 10 de outubro. O tema abordado, inserido no currículo da Biologia, foi "O cancro, hereditariede e estilos de vida".
    Este encontro, organizado em parceria com o Departamento de Matemática e Ciências Experimentais, dirigiu-se a toda a comunidade, mas, em particular, aos nossos alunos dos cursos de Ciências e Tecnologias (11ºs A e B e 12ºA) e ao curso profissional de Técnico Auxiliar de Saúde (10ºH).
    A palestra, em forma de aula dialogada, constituiu um momento de grande valor científico em que os nossos alunos se embrenharam numa atitude verdadeiramente exemplar e a restante comunidade, professores, pais e funcionários,  se deixou maravilhar pelo saber transmitido e pelo grande poder de comunicação do nosso ilustre convidado.
   Expressamos aqui a nossa gratidão  pela enorme simpatia e disponibilidade com que o Professor Sobrinho Simões nos presenteou, dando-nos a honra da sua visita.



 

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Encontro com Hemingway - 5


George Plimpton: Archibald MacLeish referiu um método seu de transmitir experiências ao leitor que afirmou ter desenvolvido enquanto fazia a cobertura de jogos de baseball nos seus dias do Kansas City Star. Tratava-se simplesmente do facto de que a experiência é transmitida através de pequenos detalhes, preservados no íntimo, que possuem o efeito de indicarem o todo ao consciencializar o leitor daquilo que só reconhecia no subconsciente.
Hemingway: Esse episódio é apócrifo. Nunca escrevi sobre baseball para o Star. O que o Archie estava a tentar recordar era a forma como eu procurava aprender em Chicago, por volta de 1920, e como buscava as coisas desapercebidas que geravam as emoções, tais como a maneira como um outfielder atirava a luva sem olhar para onde ia cair, o ranger da resina contra a tela sob a sola das sapatilhas de um lutador, a cor cinzenta da pele de Jack Blackburn logo a seguir a sair da agitação e outras coisas em que reparava do mesmo modo como um pintor realiza esboços. Reparávamos na estranha cor de Jack Blackburn e nos antigos cortes na pele e na forma como fazia rodopiar um homem antes de lhe conhecermos a história. Eram estas as coisas que nos tocavam antes de conhecermos a história.
George Plimpton: Alguma vez descreveu algum tipo de situação que não conhecesse pessoalmente?
Hemingway: Estranha pergunta. Por conhecimento pessoal quer dizer conhecimento carnal? Nesse caso, a resposta é afirmativa. Um escritor, se tiver algum valor, não descreve. Inventa ou cria a partir do seu próprio conhecimento, pessoal e impessoal, e, por vezes, parece possuir um conhecimento inexplicado que poderia vir de experiências raciais ou familiares esquecidas. Quem ensina o pombo-correio a voar como voa? Onde é que um touro de arena vai buscar a coragem ou um cão de caça o faro? Isto é uma elaboração ou uma versão condensada daquilo de que falávamos em Madrid quando não se podia confiar no meu julgamento.
George Plimpton: Até que ponto nos devemos afastar de uma experiência antes de podermos discorrer sobre ela em termos ficcionais? Os acidentes de avião em que se viu em envolvido em África, por exemplo?
Hemingway: Depende da experiência. Há uma parte de nós que a encara com alheamento desde o início. Outra parte sente-se muito envolvida. Não penso que haja qualquer regra acerca do tempo que devemos deixar passar. Depende do equilíbrio mental do indivíduo e dos seus poderes de recuperação. Sem dúvida que, para um escritor experiente, tem valor despenhar-se num avião que se incendeia. Aprende várias coisas muito rapidamente. Se lhe serão de algum modo úteis é condicionado pela sobrevivência. A sobrevivência, com honra, essa palavra importantíssima e antiquada, é igualmente importante e difícil para um escritor. Aqueles que duram pouco são sempre mais amados, uma vez que ninguém tem que os ver nas suas lutas longas, aborrecidas, implacáveis, sem tréguas, que travam num combate contra o tempo. Os que morrem ou os que se afastam cedo e com boas razões são preferidos por serem compreensíveis e humanos. O fracasso e a cobardia bem disfarçada são mais humanos e mais amados.
George Plimpton: Poder-me-ia dizer até que ponto acha que o escritor se deveria preocupar com os problemas sociopolíticos do seu tempo?
Hemingway: Todos temos a nossa consciência e não deveria haver regras acerca de como uma consciência deve funcionar. Toda a certeza que podemos ter relativamente a um escritor com uma intenção política é que, se o seu trabalho perdurar, a política terá que ser posta de lado quando o lermos. Muitos dos chamados escritores engajados mudam de visão política com frequência. Trata-se de algo muito estimulante para eles e para as suas críticas político-literárias. Por vezes, têm mesmo de reescrever os seus pontos de vista… e apressadamente. Talvez isso mereça respeito enquanto forma de busca da felicidade.
George Plimpton: A influência política de Ezra Pound no segregacionista Kasper teve algum efeito na sua convicção de que o poeta deveria ser libertado do Hospital de St. Elizabeth?
Hemingway: Não, de todo. Acredito que Ezra deveria ser libertado e autorizado a escrever poesia em Itália desde que se comprometesse a não ter uma ação política. Gostaria de ver Kasper encarcerado o mais rapidamente possível. Os grandes poetas não são necessariamente escoteiros ou chefes de escoteiros ou esplêndidas influências para a juventude. Alguns exemplos: Verlaine, Rimbaud, Shelley, Byron, Baudelaire, Proust, Gide não deveriam ter que ser aprisionados para que ninguém os imitasse na sua forma de pensar, nas suas maneiras ou na sua moralidade, por Kaspers locais. De certeza que, daqui a dez anos, este parágrafo vai precisar de uma nota de rodapé que explique quem Kasper era.
George Plimpton: Seria capaz de afirmar que o seu trabalho tem, por vezes, uma intenção didática?
Hemingway: A palavra “didática” tem sido mal usada e estragada. Morte ao Entardecer é um livro instrutivo.
George Plimpton: Já foi dito que um escritor não lida com mais do que uma ou duas ideias no seu trabalho. Diria que o seu trabalho reflete uma ou duas ideias?
Hemingway: Quem é que o disse? Parece demasiado simples. Talvez o homem que o disse tivesse apenas uma ou duas ideias.
George Plimpton: Bom, talvez fosse melhor dizê-lo da seguinte forma: Graham Greene afirmou que uma paixão dominante oferece a um conjunto de romances a unidade de um sistema. Penso que você mesmo disse que o sentido da injustiça conduz à grande escrita. Pensa que é importante que um escritor seja dominado dessa forma – por algum tipo de sentimento irresistível?
Hemingway: O sr. Greene tem facilidade em fazer afirmações que não têm a ver comigo. Ser-me-ia impossível generalizar sobre um conjunto de romances, um bando de galinholas ou outro bando de gansos. Mesmo assim, vou procurar generalizar. Um escritor que não tivesse uma noção da justiça e da injustiça estaria melhor a editar o livro de curso de uma escola para crianças sobredotadas do que a escrever romances. Outra generalização. Compreende, não são difíceis quando são suficientemente óbvias. A dádiva maior de um bom escritor é possuir um detector de balelas interno, à prova de choque. É o radar dos escritores e todos os grandes escritores o possuem.
George Plimpton: Uma última pergunta essencial: enquanto escritor criativo, qual pensa ser a função da sua arte? Porquê uma representação dos factos em vez dos próprios factos?
Hemingway: Onde está a confusão? A partir de coisas que aconteceram e de coisas existentes e de tudo o que se conhece e ainda do que não se pode conhecer, inventa-se algo que não é uma representação, mas sim algo de inteiramente novo, mais real do que o que quer que exista na realidade, e dá-se-lhe vida.E, se o fizermos suficientemente bem, dá-se-lhe imortalidade. É por isso que se escreve e por nada mais. Mas o que fazemos de todas as razões que ninguém conhece?

Tradução de Jorge Simões

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Prémios literários a granel


Para quem escreve e busca reconhecimento, segue um conjunto de prémios literários aos quais ainda vai a tempo de concorrer...
Três deles pedem a entrega dos originais até 31 de maio. São eles o Prémio Branquinho da Fonseca de literatura infantil e juvenil, o Prémio Matilde Rosa Araújo de conto infantil e o XVIII Concurso de Poesia Agostinho Gomes. Seguem os links dos respetivos regulamentos: Prémio Branquinho da Fonseca , Prémio Matilde Rosa Araújo e Concurso de Poesia Agostinho Gomes. .
Não deixem de tentar. Quem sabe não poderá ser o início de uma carreira promissora...

sexta-feira, 31 de março de 2017

Semana da Francofonia foi sucesso alargado

Mais uma vez se celebrou a francofonia no Agrupamento de Escolas do Castêlo da Maia. Esta atividade decorre na semana de 20 de março, dia da francofonia, em que se festeja a língua francesa,  falada nos cinco continentes em 57 países. São cerca de 270 milhões os falantes desta língua e o número de empresas francesas implantadas em Portugal tem vindo a crescer, havendo mais de 20 empresas no concelho da Maia. Destacam-se o grupo Auchan (Jumbo), a Decathlon e a Leroy Merlin.
Os alunos e docentes de Francês vestiram a escola de muitas cores alegres e brilhantes para receber os seus colegas, os encarregados de educação e os docentes do Agrupamento como outros de escolas dos arredores. Desde uma grande e interessante exposição de trabalhos realizados pelos alunos da língua até um concurso de gastronomia - "A melhor quiche" e "A melhor tarte" - que contou com a colaboração dos pais. Neste concurso, saíram vencedores o aluno Leandro Minguta, do 8º A (quiche), e Marta Silva, do 9º C (tarte). Decorreram ainda duas sessões de formação para docentes (proporcionadas pelas gentis palestrantes Dra. Lídia Marques e Dra. Carlota Madeira), um jantar francófono (da responsabilidade dos alunos e docentes do curso de Restauração do AECM, coordenados pelo chef paulo Correia) em que participou o grupo coral de alunos "Les Bleus" e duas sessões de cinema francês: Qu'est-ce qu'on a fait au bon Dieu? e C'est quoi cette famille?
O grupo de docentes de Francês, constituído por Fátima Mondim, Isabel Maia, Jorge Simões e a subcoordenadora Elisabete Oliveira agradecem aos alunos e respetivos encarregados de educação, aos restantes docentes de Línguas que colaboraram na decoração dos espaços e à Direção do Agrupamento todo o apoio e carinho demonstrados ao longo destes quatro dias extraordinários. Vive le Français! 

quarta-feira, 22 de março de 2017

Encontro com Hemingway - 4


George Plimpton: De que modo se desenvolve, na sua mente, a conceção de uma short story? O tema ou a trama ou alguma personagem sofrem alterações à medida que avança?
Hemingway: Às vezes conhecemos a história. Outras, inventamo-la à medida que avançamos e não fazemos ideia do que vai acontecer. Tudo muda à medida que avança. É isso que gera o movimento que gera a história. Por vezes, o movimento é de tal forma lento que parece não se mover. Mas há sempre mudança e movimento.
George Plimpton: Também acontece assim com o romance? Ou elabora um plano completo antes de começar a escrever e segue-o à risca?
Hemingway: Em Por Quem os Sinos Dobram, isso constituiu um problema diário. Eu sabia basicamente o que ia acontecer. Mas inventava o que acontecia todos os dias.
George Plimpton: As Verdes Colinas de África, Ter e Não Ter e Na Outra Margem, Entre as Árvores começaram todos como short stories e acabaram como romances? Em caso afirmativo, serão as formas de tal modo semelhantes que o autor pode passar de uma a outra sem rever totalmente a sua abordagem?
Hemingway: Não, não é verdade. As Verdes Colinas de África não é um romance mas constituiu uma tentativa de escrever um livro absolutamente real, com o fim de verificar se o estado de um país e os padrões das ações de um mês poderiam, se apresentados com verdade, competir com trabalhos ficcionais. Depois de o ter escrito, escrevi duas short stories, As Neves do Kilimanjaro e The Short Happy Life of Francis Macomber. Tratou-se de histórias que criei com base no conhecimento e experiência adquiridos no mesmo safari que eu procurara descrever realisticamente em As Verdes Colinas. Ter e Não Ter e Na Outra Margem, Entre as Árvores começaram ambos como short stories.
George Plimpton: Consegue passar facilmente de um projeto literário a outro ou continua até terminar o que começou?
Hemingway: O facto de estar, neste momento, a interromper trabalho sério para responder a estas perguntas demonstra que sou de tal modo estúpido que deveria ser severamente castigado. Não se preocupe. Hei de ser.
George Plimpton: Imagina-se a competir com outros escritores?
Hemingway: Nunca. Costumava escrever melhor do que alguns escritores já falecidos de cujo valor estava certo. Já há muito que tenho vindo apenas a procurar escrever o melhor que posso. Às vezes, tenho sorte e escrevo melhor do que posso.
George Plimpton: Acha que a força de um escritor diminui à medida que envelhece? Em As Verdes Colinas de África menciona que os escritores americanos, depois de uma certa idade, se transformam em avozinhos.
Hemingway: Não sei. Quem sabe bem o que faz deveria durar tanto quanto a sua cabeça permitisse. Nesse livro, se vir bem, verificará que estava a falar de literatura americana com um austríaco desprovido de humor que me estava a obrigar a falar quando o que queria era fazer outra coisa. Escrevi um relato exato da conversa. Não pretendi fazer declarações imortais. Uma boa fatia das declarações é suficiente.
George Plimpton: Não falámos sobre as personagens. As personagens dos seus trabalhos são retiradas, sem exceção, da vida real?
Hemingway: Claro que não. Algumas nascem da vida real. Na maioria dos casos, invento pessoas a partir do meu conhecimento, compreensão e experiência das pessoas.
George Plimpton: Poderia falar um pouco sobre o processo de transformar uma personagem da vida real numa personagem fictícia?
Hemingway: Se explicasse como isso é, por vezes, feito, seria como oferecer um livro de cabeceira aos advogados.
George Plimpton: Faz a distinção – tal como E. M. Forster – entre personagens “planas” e personagens “redondas”?
Hemingway: Se descrevermos alguém, isso é plano, tal como uma fotografia e, no meu ponto de vista, um falhanço. Se o criarmos a partir daquilo que conhecemos, todas as dimensões deverão estar presentes.
George Plimpton: De que personagens suas se recorda com afeto?
Hemingway: A lista seria longa.
George Plimpton: Então, gosta de reler os seus próprios livros – sem sentir que haveria alterações que gostaria de fazer?
Hemingway: Leio-os, por vezes, para me animar em momentos em que é difícil escrever e lembro-me de que sempre foi difícil e, ocasionalmente, quase impossível.
George Plimpton: Como é que arranja nomes para as suas personagens?
Hemingway: O melhor que posso.
George Plimpton: Os títulos surgem-lhe enquanto ainda está a escrever a história?
Hemingway: Não. Faço uma lista de títulos depois de ter terminado a história ou o livro – às vezes, chego à centena. Depois, começo a eliminá-los. Sucede que os elimine a todos.
George Plimpton: E faz isso mesmo com uma história cujo título provém do texto – “Hills Like White Elephants”, por exemplo?
Hemingway: Sim. O título só surge depois da escrita. Conheci uma rapariga em Prunier, onde tinha ido comer ostras antes do almoço. Sabia que tinha tido um aborto. Aproximei-me e conversámos, não sobre isso, mas enquanto voltava para casa pensei na história, acabei por não almoçar e passei a tarde a escrevê-la.
George Plimpton: Assim, quando não está a escrever, é um observador constante, em busca de algo que possa utilizar.
Hemingway: Certamente. Se um escritor deixar de observar, está acabado. Mas não tem que observar de modo consciente ou de pensar como pode ser útil. Talvez fosse assim no princípio. Mas, mais tarde, tudo o que vê vai para a grande reserva das coisas que conhece ou que viu. Se tem alguma importância, procuro sempre escrever a partir do princípio do icebergue. Sete oitavos estão submersos e não conseguimos vê-los. Podemos eliminar o que quisermos e o icebergue fica mais forte. É a parte que não se vê. Se um escritor omitir algo por desconhecimento, a história tem um buraco.
O Velho e o Mar poderia ter tido mais de mil páginas e todas as personagens da aldeia e a forma como ganhavam a vida, como tinham nascido, como tinham sido educados, como tinham tido filhos, etc. Há outros escritores que o fazem com excelência. Quando escrevemos, estamos limitados pelo que já foi feito de modo satisfatório. Então, procurei fazer algo de diferente. Para começar, procurei eliminar tudo o que não fosse necessário para transmitir a experiência ao leitor, de modo a que, depois da leitura, ela se tornasse uma parte da sua própria experiência e parecesse ter efetivamente acontecido. Trata-se de algo muito difícil e deu-me muito trabalho.
Em todo o caso, tive uma sorte incrível e fui capaz de transmitir inteiramente a experiência e torná-la inédita. A minha sorte foi que tinha um bom homem e um bom rapaz e que, ultimamente, os escritores têm-se esquecido de que ainda há coisas assim. Depois, podemos escrever sobre o oceano, tal como podemos escrever sobre o homem. Isso foi uma sorte. Vi o espadim copular e sei como é. Então, deixei isso de fora. Vi um cardume de mais de cinquenta cachalotes nessa mesma zona do oceano e, certa vez, arpoei um de quase dezoito metros e perdi-o. Então, deixei isso de fora. Deixei de fora todas as histórias que conheço da aldeia piscatória. Mas esse conhecimento é o que forma a parte oculta do icebergue. (continua)

Tradução de Jorge Simões

quinta-feira, 16 de março de 2017

Novidades editoriais de março


Se estás em dúvida quanto ao próximo livro a escolher, trazemos-te hoje algumas sugestões, recolhidas do calendário editorial do grupo Leya para este mês.
No que diz respeito a autores nacionais, temos o clássico Miguel Torga, com Portugal, O Canto e as Armas, de Manuel Alegre, Nova Teoria do Pecado, de Miguel Real, e A Construção do Vazio, de Patrícia Reis. Somam-se-lhes Praça de Itália, de Antonio Tabucchi, O Sistema Periódico, de Primo Levi, Em Queda Livre, de William Golding, e O Filho, de Jo Nesbo. Todos com a chancela da D. Quixote.
A Biblioteca da Secundária do Castêlo deseja-te boas viagens nas páginas da descoberta.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Encontro com Hemingway - 3


George Plimpton: Costuma ler manuscritos?
Hemingway: A não ser que conheçamos pessoalmente o autor, isso pode arranjar-nos problemas. Há alguns anos, fui processado por plágio por um homem que garantia que eu tinha ido buscar o Por Quem os Sinos Dobram a um roteiro de cinema por publicar que ele tinha escrito. Ele tinha lido o roteiro numa festa qualquer, em Hollywood. Segundo afirmou, eu estava lá, pelo menos havia um tipo chamado “Ernie” a ouvir, e isso bastou-lhe para me processar em um milhão de dólares. Na mesma altura, processou os produtores dos filmes Os Sete Cavaleiros da Vitória e Cisco Kid com a argumentação de que também tinham sido roubados do mesmo roteiro. Fomos a tribunal e, naturalmente, ganhámos o caso. Como se veio a verificar, o homem estava falido.
George Plimpton: Regressemos à lista e pensemos num dos pintores – Jerónimo Bosch, por exemplo. A qualidade simbólica de pesadelo do seu trabalho parece muito distante do que escreve.
Hemingway: Também tenho pesadelos e conheço os pesadelos dos outros. Mas não há necessidade de os colocar no papel. Tudo o que conhecermos e pudermos omitir na escrita, surge como uma qualidade. Quando um escritor omite coisas que desconhece, surgem como buracos na escrita.
George Plimpton: Isso significa que um bom conhecimento dos trabalhos dos autores da sua lista ajudam a encher o “poço” de que falou há pouco? Ou constituíram uma ajuda consciente no desenvolvimento das técnicas de escrita?
Hemingway: Foram uma parte do aprender a ver, a escutar, a pensar, a sentir e a não sentir, e a escrever. O poço é onde está a inspiração. Ninguém sabe de que é feita, muito menos nós próprios. O que se sabe é que se tem ou que se tem que esperar que regresse.
George Plimpton: Aceita a existência de simbolismo nos seus romances?
Hemingway: Suponho que haja símbolos, já que os críticos não param de os encontrar. Se não se importar, desagrada-me falar sobre eles e ser interrogado acerca deles. É suficientemente difícil escrever livros e histórias sem nos pedirem também para os explicar. Além disso, rouba trabalho aos explicadores. Se cinco ou seis ou mais bons explicadores conseguem continuar, por que hei de interferir? Leia o que escrevo pelo prazer da leitura. Tudo o que encontrar para além disso terá a ver com o que tiver trazido para a leitura.
George Plimpton: Mais uma pergunta na mesma linha: um dos editores pensa ter encontrado, em O Sol Nasce Sempre (Fiesta), um paralelismo entre o público na arena de touros e as personagens do próprio romance. Ele lembra que a primeira frase do livro nos diz que Robert Cohn é um pugilista; mais tarde, durante a desencajonada, descreve-se o touro como usando os cornos como um pugilista, aplicando ganchos e golpes. E quando o touro é atraído e pacificado com a presença de um novilho castrado, Robert Cohn submete-se a Jake que está castrado tal como o novilho. Ele vê Mike como o picador, engodando Cohn repetidamente. A tese do editor continua, mas ele pergunta se era sua intenção  ordenar o romance com a estrutura trágica do ritual da tourada.
Hemingway: Parece que o editor foi um pouco disparatado. Quem disse que Jake “estava castrado tal como o novilho”? A verdade é que tinha sofrido um ferimento muito diferente e que os seus testículos se encontravam intactos e sem problemas. Portanto, ele era capaz de todos os sentimentos normais de um homem, mas incapaz de os consumar. A distinção importante é que o seu ferimento era físico e não psicológico e que não estava castrado.
George Plimpton: Estas perguntas sobre a capacidade artística são aborrecidas.
Hemingway: Uma pergunta sensata não é nem um prazer nem um aborrecimento. Ainda assim, acho que é muito mau para um escritor falar sobre a forma como escreve. Ele escreve para ser lido e não deveria haver necessidade de explicações ou dissertações. De certeza que há muito mais do que pode ser abarcado na primeira leitura, mas não cabe ao escritor explicá-lo ou fazer visitas guiadas às regiões mais difíceis do seu trabalho.
George Plimpton: A propósito, lembro-me de ter avisado que é perigoso para um escritor falar sobre um trabalho em decurso porque, digamos, pode dá-lo a conhecer antes do tempo. Porque é que tem que ser assim? Só pergunto por haver tantos escritores – Twain, Wilde, Thurber, Steffens, por exemplo – que parecem ter polido o seu material depois de o testarem em ouvintes.
Hemingway: Não posso crer que Twain alguma vez tenha “testado” Huckleberry Finn em ouvintes. Se o fez, o mais provável é que o tenham levado a cortar coisas boas e a acrescentar partes más. As pessoas que conheciam Wilde diziam que era um melhor conversador do que escritor. Steffen falava melhor do que escrevia. Grande parte da sua escrita e do que dizia podiam ser difíceis de acreditar e ele alterou, ao que sei, muitas histórias à medida que envelhecia. Se Thurber conseguir falar tão bem como escreve, deve ser um dos melhores e menos entediantes conversadores do mundo. O homem que conheço que melhor fala sobre a sua profissão e que possui a língua mais agradável e afiada é Juan Belmonte, o matador.
George Plimpton: É capaz de nos dizer quanto esforço calculado esteve envolvido no desenvolvimento do seu estilo distintitivo?
Hemingway: Essa é uma pergunta longa e cansativa e se passar um par de dias a responder-lhe, será de um modo tão autoconsciente que tornará impossível escrever. Posso dizer que aquilo a que os amadores chamam estilo costuma ser a falta de jeito inevitável quando se começa a tentar fazer algo que ainda não foi feito. Quase nenhum novo clássico se assemelha aos clássicos anteriores. No início, as pessoas só conseguem ver a falta de jeito. Nessa altura, não é uma coisa muito percetível. Quando a falta de jeito se torna muito nítida as pessoas pensam que é um estilo e muitas começam a copiá-lo. É lamentável.
George Plimpton: Certa vez, escreveu-me dizendo que as meras circunstâncias em que vários trabalhos de ficção eram escritos podiam ser instrutivas. Isso é aplicável a Os Assassinos – disse-me que tinha escrito essa short story, Ten Indians e Today is Friday num só dia – e, quem sabe, ao seu primeiro romance, O Sol Nasce Sempre?
Hemingway: Vejamos… Comecei O Sol Nasce Sempre em Valencia, no meu aniversário , a 21 de julho. Eu e a minha mulher, Hadley, tínhamos ido mais cedo a Valencia para tentarmos arranjar bilhetes para a feria, que começou a vinte e quatro de julho. Toda a gente da minha idade tinha escrito um romance e eu ainda estava com dificuldades em escrever um parágrafo. Assim, comecei o livro no dia dos meus anos, escrevi durante o tempo que durou a feria, na cama, de manhã, e continuei em Madrid. Em Madrid não havia feria. Mas tínhamos um quarto com uma mesa e escrevi luxuosamente na mesa e, na esquina mais próxima, numa cervejaria da Pasaje Alvarez onde estava mais fresco. Por fim, acabou por ficar demasiado calor para escrever e fomos para Hendaia. Havia lá um hotelzinho barato junto à esplêndida e enorme praia e trabalhei muito bem lá. De seguida, fui para Paris e terminei o primeiro rascunho no apartamento por cima da serralharia, no número 113 de Notre-Dame-des-Champs, seis semanas depois de ter começado. Mostrei-o a Nathan Asch, o escritor, que nessa altura tinha um sotaque muito acentuado e que disse “Hem, que é ke keresh dicer kom teres escrito um livro? Um romanss, hmm. Hem, eshtás a eskrever um lifro de fiagens”. Não me senti muito desencorajado e reescrevi tudo, tendo mantido a viagem (a parte sobre  a viagem de pesca e Pamplona) em Schruns, no Voralberg, no Hotel Taube.
As histórias que diz que menciona, escrevi-as num dia, em Madrid, a 16 de maio, quando as touradas de San Isidro foram canceladas. Em primeiro lugar, escrevi Os Assassinos, que já tinha tentado escrever sem sucesso. Depois, a seguir ao almoço, enfiei-me na cama para me aquecer e escrevi Today is Friday. Estava tão cheio de inspiração que pensei que talvez estivesse a enlouquecer e ainda tinha mais uma seis histórias para escrever. Então, vesti-me e fui ao Fornos, o velho café dos toureiros, tomei café, voltei e escrevi Ten Indians. Senti-me muito triste, bebi um pouco de brandy e adormeci. Tinha-me esquecido de comer e um dos empregados trouxe-me um pouco de bacalao e um pequeno bife com batatas fritas e uma garrafa de Valdepeñas.
A dona da pensão estava permanentemente preocupada por eu poder não comer o suficiente e tinha enviado o empregado. Recordo-me de estar sentado na cama a comer e a beber o Valdepeñas. O empregado disse que ia trazer outra garrafa e que a Señora queria saber se eu ia passar a noite a escrever. Respondi-lhe que não e que ia descansar um pouco. “Porque é que não tenta escrever só mais uma?”, perguntou-me o empregado. “Só tenho que escrever uma”, expliquei. “Qual quê!”, respondeu. “Podia perfeitamente escrever seis”. “Tento amanhã”, disse eu. “Tente hoje”, insistiu. “Porque é que acha que a velha mandou a comida?”
“Estou cansado”, expliquei. “Disparate!”, disse ele (o termo não foi disparate). “Cansado depois de três historiazinhas. Traduza-me uma delas”.
"Deixe-me em paz", pedi. "Como é que vou conseguir escrever se não me deixar em paz?". Então, sentei-me na cama e pensei que devia ser um escritor excelente se a primeira história fosse tão boa como esperava que fosse. (continua)

Tradução de Jorge Simões