quarta-feira, 22 de março de 2017

Encontro com Hemingway - 4


George Plimpton: De que modo se desenvolve, na sua mente, a conceção de uma short story? O tema ou a trama ou alguma personagem sofrem alterações à medida que avança?
Hemingway: Às vezes conhecemos a história. Outras, inventamo-la à medida que avançamos e não fazemos ideia do que vai acontecer. Tudo muda à medida que avança. É isso que gera o movimento que gera a história. Por vezes, o movimento é de tal forma lento que parece não se mover. Mas há sempre mudança e movimento.
George Plimpton: Também acontece assim com o romance? Ou elabora um plano completo antes de começar a escrever e segue-o à risca?
Hemingway: Em Por Quem os Sinos Dobram, isso constituiu um problema diário. Eu sabia basicamente o que ia acontecer. Mas inventava o que acontecia todos os dias.
George Plimpton: As Verdes Colinas de África, Ter e Não Ter e Na Outra Margem, Entre as Árvores começaram todos como short stories e acabaram como romances? Em caso afirmativo, serão as formas de tal modo semelhantes que o autor pode passar de uma a outra sem rever totalmente a sua abordagem?
Hemingway: Não, não é verdade. As Verdes Colinas de África não é um romance mas constituiu uma tentativa de escrever um livro absolutamente real, com o fim de verificar se o estado de um país e os padrões das ações de um mês poderiam, se apresentados com verdade, competir com trabalhos ficcionais. Depois de o ter escrito, escrevi duas short stories, As Neves do Kilimanjaro e The Short Happy Life of Francis Macomber. Tratou-se de histórias que criei com base no conhecimento e experiência adquiridos no mesmo safari que eu procurara descrever realisticamente em As Verdes Colinas. Ter e Não Ter e Na Outra Margem, Entre as Árvores começaram ambos como short stories.
George Plimpton: Consegue passar facilmente de um projeto literário a outro ou continua até terminar o que começou?
Hemingway: O facto de estar, neste momento, a interromper trabalho sério para responder a estas perguntas demonstra que sou de tal modo estúpido que deveria ser severamente castigado. Não se preocupe. Hei de ser.
George Plimpton: Imagina-se a competir com outros escritores?
Hemingway: Nunca. Costumava escrever melhor do que alguns escritores já falecidos de cujo valor estava certo. Já há muito que tenho vindo apenas a procurar escrever o melhor que posso. Às vezes, tenho sorte e escrevo melhor do que posso.
George Plimpton: Acha que a força de um escritor diminui à medida que envelhece? Em As Verdes Colinas de África menciona que os escritores americanos, depois de uma certa idade, se transformam em avozinhos.
Hemingway: Não sei. Quem sabe bem o que faz deveria durar tanto quanto a sua cabeça permitisse. Nesse livro, se vir bem, verificará que estava a falar de literatura americana com um austríaco desprovido de humor que me estava a obrigar a falar quando o que queria era fazer outra coisa. Escrevi um relato exato da conversa. Não pretendi fazer declarações imortais. Uma boa fatia das declarações é suficiente.
George Plimpton: Não falámos sobre as personagens. As personagens dos seus trabalhos são retiradas, sem exceção, da vida real?
Hemingway: Claro que não. Algumas nascem da vida real. Na maioria dos casos, invento pessoas a partir do meu conhecimento, compreensão e experiência das pessoas.
George Plimpton: Poderia falar um pouco sobre o processo de transformar uma personagem da vida real numa personagem fictícia?
Hemingway: Se explicasse como isso é, por vezes, feito, seria como oferecer um livro de cabeceira aos advogados.
George Plimpton: Faz a distinção – tal como E. M. Forster – entre personagens “planas” e personagens “redondas”?
Hemingway: Se descrevermos alguém, isso é plano, tal como uma fotografia e, no meu ponto de vista, um falhanço. Se o criarmos a partir daquilo que conhecemos, todas as dimensões deverão estar presentes.
George Plimpton: De que personagens suas se recorda com afeto?
Hemingway: A lista seria longa.
George Plimpton: Então, gosta de reler os seus próprios livros – sem sentir que haveria alterações que gostaria de fazer?
Hemingway: Leio-os, por vezes, para me animar em momentos em que é difícil escrever e lembro-me de que sempre foi difícil e, ocasionalmente, quase impossível.
George Plimpton: Como é que arranja nomes para as suas personagens?
Hemingway: O melhor que posso.
George Plimpton: Os títulos surgem-lhe enquanto ainda está a escrever a história?
Hemingway: Não. Faço uma lista de títulos depois de ter terminado a história ou o livro – às vezes, chego à centena. Depois, começo a eliminá-los. Sucede que os elimine a todos.
George Plimpton: E faz isso mesmo com uma história cujo título provém do texto – “Hills Like White Elephants”, por exemplo?
Hemingway: Sim. O título só surge depois da escrita. Conheci uma rapariga em Prunier, onde tinha ido comer ostras antes do almoço. Sabia que tinha tido um aborto. Aproximei-me e conversámos, não sobre isso, mas enquanto voltava para casa pensei na história, acabei por não almoçar e passei a tarde a escrevê-la.
George Plimpton: Assim, quando não está a escrever, é um observador constante, em busca de algo que possa utilizar.
Hemingway: Certamente. Se um escritor deixar de observar, está acabado. Mas não tem que observar de modo consciente ou de pensar como pode ser útil. Talvez fosse assim no princípio. Mas, mais tarde, tudo o que vê vai para a grande reserva das coisas que conhece ou que viu. Se tem alguma importância, procuro sempre escrever a partir do princípio do icebergue. Sete oitavos estão submersos e não conseguimos vê-los. Podemos eliminar o que quisermos e o icebergue fica mais forte. É a parte que não se vê. Se um escritor omitir algo por desconhecimento, a história tem um buraco.
O Velho e o Mar poderia ter tido mais de mil páginas e todas as personagens da aldeia e a forma como ganhavam a vida, como tinham nascido, como tinham sido educados, como tinham tido filhos, etc. Há outros escritores que o fazem com excelência. Quando escrevemos, estamos limitados pelo que já foi feito de modo satisfatório. Então, procurei fazer algo de diferente. Para começar, procurei eliminar tudo o que não fosse necessário para transmitir a experiência ao leitor, de modo a que, depois da leitura, ela se tornasse uma parte da sua própria experiência e parecesse ter efetivamente acontecido. Trata-se de algo muito difícil e deu-me muito trabalho.
Em todo o caso, tive uma sorte incrível e fui capaz de transmitir inteiramente a experiência e torná-la inédita. A minha sorte foi que tinha um bom homem e um bom rapaz e que, ultimamente, os escritores têm-se esquecido de que ainda há coisas assim. Depois, podemos escrever sobre o oceano, tal como podemos escrever sobre o homem. Isso foi uma sorte. Vi o espadim copular e sei como é. Então, deixei isso de fora. Vi um cardume de mais de cinquenta cachalotes nessa mesma zona do oceano e, certa vez, arpoei um de quase dezoito metros e perdi-o. Então, deixei isso de fora. Deixei de fora todas as histórias que conheço da aldeia piscatória. Mas esse conhecimento é o que forma a parte oculta do icebergue. (continua)

Tradução de Jorge Simões

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