quinta-feira, 25 de maio de 2017

Encontro com Hemingway - 5


George Plimpton: Archibald MacLeish referiu um método seu de transmitir experiências ao leitor que afirmou ter desenvolvido enquanto fazia a cobertura de jogos de baseball nos seus dias do Kansas City Star. Tratava-se simplesmente do facto de que a experiência é transmitida através de pequenos detalhes, preservados no íntimo, que possuem o efeito de indicarem o todo ao consciencializar o leitor daquilo que só reconhecia no subconsciente.
Hemingway: Esse episódio é apócrifo. Nunca escrevi sobre baseball para o Star. O que o Archie estava a tentar recordar era a forma como eu procurava aprender em Chicago, por volta de 1920, e como buscava as coisas desapercebidas que geravam as emoções, tais como a maneira como um outfielder atirava a luva sem olhar para onde ia cair, o ranger da resina contra a tela sob a sola das sapatilhas de um lutador, a cor cinzenta da pele de Jack Blackburn logo a seguir a sair da agitação e outras coisas em que reparava do mesmo modo como um pintor realiza esboços. Reparávamos na estranha cor de Jack Blackburn e nos antigos cortes na pele e na forma como fazia rodopiar um homem antes de lhe conhecermos a história. Eram estas as coisas que nos tocavam antes de conhecermos a história.
George Plimpton: Alguma vez descreveu algum tipo de situação que não conhecesse pessoalmente?
Hemingway: Estranha pergunta. Por conhecimento pessoal quer dizer conhecimento carnal? Nesse caso, a resposta é afirmativa. Um escritor, se tiver algum valor, não descreve. Inventa ou cria a partir do seu próprio conhecimento, pessoal e impessoal, e, por vezes, parece possuir um conhecimento inexplicado que poderia vir de experiências raciais ou familiares esquecidas. Quem ensina o pombo-correio a voar como voa? Onde é que um touro de arena vai buscar a coragem ou um cão de caça o faro? Isto é uma elaboração ou uma versão condensada daquilo de que falávamos em Madrid quando não se podia confiar no meu julgamento.
George Plimpton: Até que ponto nos devemos afastar de uma experiência antes de podermos discorrer sobre ela em termos ficcionais? Os acidentes de avião em que se viu em envolvido em África, por exemplo?
Hemingway: Depende da experiência. Há uma parte de nós que a encara com alheamento desde o início. Outra parte sente-se muito envolvida. Não penso que haja qualquer regra acerca do tempo que devemos deixar passar. Depende do equilíbrio mental do indivíduo e dos seus poderes de recuperação. Sem dúvida que, para um escritor experiente, tem valor despenhar-se num avião que se incendeia. Aprende várias coisas muito rapidamente. Se lhe serão de algum modo úteis é condicionado pela sobrevivência. A sobrevivência, com honra, essa palavra importantíssima e antiquada, é igualmente importante e difícil para um escritor. Aqueles que duram pouco são sempre mais amados, uma vez que ninguém tem que os ver nas suas lutas longas, aborrecidas, implacáveis, sem tréguas, que travam num combate contra o tempo. Os que morrem ou os que se afastam cedo e com boas razões são preferidos por serem compreensíveis e humanos. O fracasso e a cobardia bem disfarçada são mais humanos e mais amados.
George Plimpton: Poder-me-ia dizer até que ponto acha que o escritor se deveria preocupar com os problemas sociopolíticos do seu tempo?
Hemingway: Todos temos a nossa consciência e não deveria haver regras acerca de como uma consciência deve funcionar. Toda a certeza que podemos ter relativamente a um escritor com uma intenção política é que, se o seu trabalho perdurar, a política terá que ser posta de lado quando o lermos. Muitos dos chamados escritores engajados mudam de visão política com frequência. Trata-se de algo muito estimulante para eles e para as suas críticas político-literárias. Por vezes, têm mesmo de reescrever os seus pontos de vista… e apressadamente. Talvez isso mereça respeito enquanto forma de busca da felicidade.
George Plimpton: A influência política de Ezra Pound no segregacionista Kasper teve algum efeito na sua convicção de que o poeta deveria ser libertado do Hospital de St. Elizabeth?
Hemingway: Não, de todo. Acredito que Ezra deveria ser libertado e autorizado a escrever poesia em Itália desde que se comprometesse a não ter uma ação política. Gostaria de ver Kasper encarcerado o mais rapidamente possível. Os grandes poetas não são necessariamente escoteiros ou chefes de escoteiros ou esplêndidas influências para a juventude. Alguns exemplos: Verlaine, Rimbaud, Shelley, Byron, Baudelaire, Proust, Gide não deveriam ter que ser aprisionados para que ninguém os imitasse na sua forma de pensar, nas suas maneiras ou na sua moralidade, por Kaspers locais. De certeza que, daqui a dez anos, este parágrafo vai precisar de uma nota de rodapé que explique quem Kasper era.
George Plimpton: Seria capaz de afirmar que o seu trabalho tem, por vezes, uma intenção didática?
Hemingway: A palavra “didática” tem sido mal usada e estragada. Morte ao Entardecer é um livro instrutivo.
George Plimpton: Já foi dito que um escritor não lida com mais do que uma ou duas ideias no seu trabalho. Diria que o seu trabalho reflete uma ou duas ideias?
Hemingway: Quem é que o disse? Parece demasiado simples. Talvez o homem que o disse tivesse apenas uma ou duas ideias.
George Plimpton: Bom, talvez fosse melhor dizê-lo da seguinte forma: Graham Greene afirmou que uma paixão dominante oferece a um conjunto de romances a unidade de um sistema. Penso que você mesmo disse que o sentido da injustiça conduz à grande escrita. Pensa que é importante que um escritor seja dominado dessa forma – por algum tipo de sentimento irresistível?
Hemingway: O sr. Greene tem facilidade em fazer afirmações que não têm a ver comigo. Ser-me-ia impossível generalizar sobre um conjunto de romances, um bando de galinholas ou outro bando de gansos. Mesmo assim, vou procurar generalizar. Um escritor que não tivesse uma noção da justiça e da injustiça estaria melhor a editar o livro de curso de uma escola para crianças sobredotadas do que a escrever romances. Outra generalização. Compreende, não são difíceis quando são suficientemente óbvias. A dádiva maior de um bom escritor é possuir um detector de balelas interno, à prova de choque. É o radar dos escritores e todos os grandes escritores o possuem.
George Plimpton: Uma última pergunta essencial: enquanto escritor criativo, qual pensa ser a função da sua arte? Porquê uma representação dos factos em vez dos próprios factos?
Hemingway: Onde está a confusão? A partir de coisas que aconteceram e de coisas existentes e de tudo o que se conhece e ainda do que não se pode conhecer, inventa-se algo que não é uma representação, mas sim algo de inteiramente novo, mais real do que o que quer que exista na realidade, e dá-se-lhe vida.E, se o fizermos suficientemente bem, dá-se-lhe imortalidade. É por isso que se escreve e por nada mais. Mas o que fazemos de todas as razões que ninguém conhece?

Tradução de Jorge Simões

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