George
Plimpton: Archibald MacLeish referiu um método seu de transmitir experiências
ao leitor que afirmou ter desenvolvido enquanto fazia a cobertura de jogos de baseball nos seus dias
do Kansas City Star. Tratava-se
simplesmente do facto de que a experiência é transmitida através de pequenos
detalhes, preservados no íntimo, que possuem o efeito de indicarem o todo ao
consciencializar o leitor daquilo que só reconhecia no subconsciente.
Hemingway:
Esse episódio é apócrifo. Nunca escrevi sobre baseball para o Star. O que o Archie estava a tentar
recordar era a forma como eu procurava aprender em Chicago, por volta de 1920,
e como buscava as coisas desapercebidas que geravam as emoções, tais como a
maneira como um outfielder atirava a
luva sem olhar para onde ia cair, o ranger da resina contra a tela sob a sola
das sapatilhas de um lutador, a cor cinzenta da pele de Jack Blackburn logo a
seguir a sair da agitação e outras coisas em que reparava do mesmo modo como um
pintor realiza esboços. Reparávamos na estranha cor de Jack Blackburn e nos antigos
cortes na pele e na forma como fazia rodopiar um homem antes de lhe
conhecermos a história. Eram estas as coisas que nos tocavam antes de
conhecermos a história.
George
Plimpton: Alguma vez descreveu algum tipo de situação que não conhecesse
pessoalmente?
Hemingway:
Estranha pergunta. Por conhecimento pessoal quer dizer conhecimento carnal?
Nesse caso, a resposta é afirmativa. Um escritor, se tiver algum valor, não
descreve. Inventa ou cria a partir do seu próprio conhecimento, pessoal e impessoal,
e, por vezes, parece possuir um conhecimento inexplicado que poderia vir de
experiências raciais ou familiares esquecidas. Quem ensina o pombo-correio a
voar como voa? Onde é que um touro de arena vai buscar a coragem ou um cão de
caça o faro? Isto é uma elaboração ou uma versão condensada daquilo de que
falávamos em Madrid quando não se podia confiar no meu julgamento.
George
Plimpton: Até que ponto nos devemos afastar de uma experiência antes de
podermos discorrer sobre ela em termos ficcionais? Os acidentes de avião em que
se viu em envolvido em África, por exemplo?
Hemingway:
Depende da experiência. Há uma parte de nós que a encara com alheamento desde o
início. Outra parte sente-se muito envolvida. Não penso que haja qualquer regra
acerca do tempo que devemos deixar passar. Depende do equilíbrio mental do
indivíduo e dos seus poderes de recuperação. Sem dúvida que, para um escritor
experiente, tem valor despenhar-se num avião que se incendeia. Aprende várias
coisas muito rapidamente. Se lhe serão de algum modo úteis é condicionado pela
sobrevivência. A sobrevivência, com honra, essa palavra importantíssima e
antiquada, é igualmente importante e difícil para um escritor. Aqueles que
duram pouco são sempre mais amados, uma vez que ninguém tem que os ver nas suas
lutas longas, aborrecidas, implacáveis, sem tréguas, que travam num combate contra o tempo. Os que morrem ou os que se afastam cedo e com boas razões são
preferidos por serem compreensíveis e humanos. O fracasso e a cobardia bem
disfarçada são mais humanos e mais amados.
George
Plimpton: Poder-me-ia dizer até que ponto acha que o escritor se deveria
preocupar com os problemas sociopolíticos do seu tempo?
Hemingway:
Todos temos a nossa consciência e não deveria haver regras acerca de como uma
consciência deve funcionar. Toda a certeza que podemos ter relativamente a um
escritor com uma intenção política é que, se o seu trabalho perdurar, a
política terá que ser posta de lado quando o lermos. Muitos dos chamados
escritores engajados mudam de visão política com frequência. Trata-se de algo
muito estimulante para eles e para as suas críticas político-literárias. Por
vezes, têm mesmo de reescrever os seus pontos de vista… e apressadamente.
Talvez isso mereça respeito enquanto forma de busca da felicidade.
George
Plimpton: A influência política de Ezra Pound no segregacionista Kasper teve
algum efeito na sua convicção de que o poeta deveria ser libertado do Hospital
de St. Elizabeth?
Hemingway:
Não, de todo. Acredito que Ezra deveria ser libertado e autorizado a escrever
poesia em Itália desde que se comprometesse a não ter uma ação política.
Gostaria de ver Kasper encarcerado o mais rapidamente possível. Os grandes
poetas não são necessariamente escoteiros ou chefes de escoteiros ou
esplêndidas influências para a juventude. Alguns exemplos: Verlaine, Rimbaud,
Shelley, Byron, Baudelaire, Proust, Gide não deveriam ter que ser aprisionados
para que ninguém os imitasse na sua forma de pensar, nas suas maneiras ou na
sua moralidade, por Kaspers locais. De certeza que, daqui a dez anos, este
parágrafo vai precisar de uma nota de rodapé que explique quem Kasper era.
George
Plimpton: Seria capaz de afirmar que o seu trabalho tem, por vezes, uma intenção
didática?
Hemingway:
A palavra “didática” tem sido mal usada e estragada. Morte ao Entardecer é um livro instrutivo.
George
Plimpton: Já foi dito que um escritor não lida com mais do que uma ou duas
ideias no seu trabalho. Diria que o seu trabalho reflete uma ou duas ideias?
Hemingway:
Quem é que o disse? Parece demasiado simples. Talvez o homem que o disse
tivesse apenas uma ou duas ideias.
George
Plimpton: Bom, talvez fosse melhor dizê-lo da seguinte forma: Graham Greene
afirmou que uma paixão dominante oferece a um conjunto de romances a unidade de
um sistema. Penso que você mesmo disse que o sentido da injustiça conduz à
grande escrita. Pensa que é importante que um escritor seja dominado dessa
forma – por algum tipo de sentimento irresistível?
Hemingway:
O sr. Greene tem facilidade em fazer afirmações que não têm a ver comigo.
Ser-me-ia impossível generalizar sobre um conjunto de romances, um bando de
galinholas ou outro bando de gansos. Mesmo assim, vou procurar generalizar. Um
escritor que não tivesse uma noção da justiça e da injustiça estaria melhor a
editar o livro de curso de uma escola para crianças sobredotadas do que a
escrever romances. Outra generalização. Compreende, não são difíceis quando são
suficientemente óbvias. A dádiva maior de
um bom escritor é possuir um detector de balelas interno, à prova de choque. É
o radar dos escritores e todos os grandes escritores o possuem.
George
Plimpton: Uma última pergunta essencial: enquanto escritor criativo, qual pensa
ser a função da sua arte? Porquê uma representação dos factos em vez dos
próprios factos?
Hemingway: Onde está a confusão? A partir de coisas que aconteceram e de coisas existentes e de tudo o que se conhece e ainda do que não se pode conhecer, inventa-se algo que não é uma representação, mas sim algo de inteiramente novo, mais real do que o que quer que exista na realidade, e dá-se-lhe vida.E, se o fizermos suficientemente bem, dá-se-lhe imortalidade. É por isso que se escreve e por nada mais. Mas o que fazemos de todas as razões que ninguém conhece?
Tradução de Jorge Simões
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