segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Concurso "Conto à Vista"

 OS VENCEDORES

De porquês para chorar…

Exaurido, olhava pela janela e a alma fugia-lhe pelo corpo. Ainda estendeu a mão na tentativa de a apanhar. Não foi a tempo. As paredes maciças e rugosas erguiam-se em seu redor, emparedando-o num espaço diminuto e imundo. A pele, coberta de vergões e outras marcas repugnantes, mal resistia, os pés desnudos agudizavam o frio, ao qual as calças finas e beges de seu tio, três tamanhos acima, e a camisa de poliéster que recebera no seu aniversário não faziam frente. Os tornozelos estavam, agora, praticamente submersos. A água queimava.

Apesar de a noção do tempo esmorecer quando se deseja a morte, pensava “Nunca mais…”.

Refletia sobre tudo, recordava, cismava, chorando por si e por todos. A escuridão propunha isso mesmo. E motivos não lhe faltavam. De porquês para chorar, está o mundo cheio. A guerra e a fome queriam as lágrimas mais amargas, o conformismo e o capitalismo engordavam-nas e o temor das vítimas faziam-nas rolar de forma incontrolável. De quando em vez, o coração desejava palpitar pela bondade humana, chorar de alegria, por assim dizer – de causas para tal também se faz um bocadinho o mundo. As lágrimas tinham nestes momentos um sabor mais adocicado, embora contribuíssem, depois, para a concretização do mesmo fim trágico. As gargalhadas, as memórias do aroma a pão de ló feito pela avó faziam-nas brotar, desta vez acompanhadas de um sorriso. O recordar dos reencontros com o cão após uma prolongada viagem açucaravam-nas. As chuvas de verão, que andavam de mãos dadas com bonitos e etéreos arco--íris, e a ânsia do Natal, que chegaria em breve, faziam-nas cair uma a uma, humedecendo-lhe o rosto de satisfação e nostalgia.

E finalmente, a saudade. Chorar de saudade não cansava, dava cor às lágrimas, pintava-as, tinha esse dom. Já a saudade que só se apercebia da ausência fazia chorar incolor e insípido. Mas a saudade do acordar em casa, com o sol a fazer-se de convidado por entre as cortinas do quarto, numa manhã de domingo, ou a saudade de quando escutou aquela música pela primeira vez, ancorada às opiniões incisivas da irmã, essas, essas sim, coloriam as lágrimas de vivos tons. Juntavam-se estas às restantes, encharcando o seu franzino físico.

Era com olhos sempre fitos no mundo, no seu e no de outros, sempre chorando, que aguardava impaciente, atormentado até, que a maré do seu pranto subisse suficientemente para que se afogasse. Que o seu choro arrancasse o ar que ainda corria dentro de si e acabasse com aquela penosa existência.

Seguia soluçando, ora lacrimejava ora desatava num pranto que envergonharia as tempestades oceânicas. Todavia esquecera-se da janela. A redonda e gradeada ventana por onde mirava, com os olhos em água e onde apoiava o seu braço, ornamentado por uma magnífica bracelete prateada que refletia a lua.

A brecha iria, eventualmente, quase decerto, impedir o afogamento; desta a água verteria. Pela janela escorreria a morte e com uma brisa ou com um par de raios de sol surgiria a esperança, como uma lufada de ar fresco, um alívio, uma vontade de vida.

 

Salomé Fernandes, nº20, 12ºE

Sem comentários:

Enviar um comentário