Apresentamos, a partir de hoje e de forma sequenciada, uma entrevista com o celebrado autor Ernest Hemingway, ganhador do Nobel da Literatura em 1954 e uma das mais importantes figuras da escrita criativa do século XX. O encontro data de 1958 e tem como entrevistador George Plimpton.
George
Plimpton: Sente que as horas que gasta no processo da escrita são agradáveis?
Hemingway:
Muito.
George
Plimpton: Poder-nos-ia falar sobre esse processo? Quando trabalha? Mantém horários
rígidos?
Hemingway:
Quando trabalho num livro ou numa história, escrevo todas as manhãs, logo que
possível, após o raiar do dia. Não há ninguém que nos perturbe e está fresco ou
frio e trabalhamos e aquecemos à medida que escrevemos. Lemos o que escrevemos
e, como pausamos sempre num ponto em que sabemos o que vai acontecer a seguir,
retomamos a partir daí. Escrevemos até chegarmos a um ponto em que ainda temos
inspiração e sabemos como a história vai continuar e paramos e procuramos viver
até ao dia seguinte, quando retomamos o trabalho. Podemos, por exemplo, ter
começado às seis da manhã e podemos continuar até ao meio-dia ou mesmo antes
disso. Quando paramos, sentimo-nos tão vazios, ou simultaneamente nunca vazios
mas no processo de ganhar novas energias, como quando fizemos amor com alguém
que amamos. Nada nos pode magoar, nada de mau pode acontecer, nada tem
significado até ao dia seguinte, quando retomamos o trabalho. Esperar pelo dia
seguinte é a parte difícil.
George
Plimpton: Consegue esquecer os seus projetos quando está longe da máquina de
escrever?
Hemingway:
Claro. Mas trata-se de algo que exige disciplina e trata-se de uma disciplina
adquirida. Tem que ser.
George
Plimpton: Faz alguma reescrita enquanto relê o que escreveu no dia anterior? Ou
trata-se de algo que surge mais tarde, quando tudo está terminado?
Hemingway:
Todos os dias reescrevo o que escrevi no dia anterior. Quando termino,
naturalmente que avanço. Posso voltar a corrigir e a reescrever quando outra
pessoa passa o texto à máquina e o vemos escrito dessa maneira. A última
oportunidade são as provas. Sinto-me grato por essas diferentes oportunidades.
George
Plimpton: Até que ponto reescreve?
Hemingway:
Depende. Reescrevi o final de Adeus às Armas, a última página, trinta e nove
vezes antes de me dar por satisfeito.
George
Plimpton: Foi por causa de algum problema técnico? O que é que o empatou?
Hemingway:
Arranjar as palavras certas.
George
Plimpton: É a reescrita que aviva a inspiração?
Hemingway:
A releitura coloca-nos sempre numa posição em que temos que avançar, sabendo que é o melhor que conseguimos fazer
naquele momento. Há sempre inspiração algures.
George
Plimpton: Mas há momentos em que a inspiração simplesmente está ausente?
Hemingway:
Naturalmente. Mas se tivermos parado num momento em que sabemos o que se segue,
podemos avançar. Desde que consigamos começar, tudo está bem. A inspiração
acaba por chegar.
George
Plimpton: Thornton Wilder fala-nos de técnicas mnemónicas que ajudam o escritor
a avançar. Ele diz que certa vez lhe contou que aguçava vinte lápis.
Hemingway:
Não acho eu alguma vez tenha tido vinte lápis em simultâneo. Se gastar sete
lápis número 2, terei trabalhado bem.
George
Plimpton: Em que lugares gostou mais de trabalhar? O hotel Ambos Mundos deve
ter sido um deles, tendo em conta o número de livros que lá escreveu. Ou aquilo
que o rodeia tem pouca influência no que escreve?
Hemingway:
O Ambos Mundos, em Havana, era um ótimo local para trabalhar. O Finca é
esplêndido, ou era. Mas trabalhei bem onde quer que tenha sido. Ou seja,
consegui trabalhar o melhor que pude em circunstâncias variadas. O telefone e
os visitantes é que destroem o trabalho.
George
Plimpton: A estabilidade emocional é importante para se trabalhar bem? Certa
vez, contou-me que só conseguia escrever bem se estivesse apaixonado. Poderia
falar-nos sobre isso?
Hemingway:
Que pergunta! Mas parabéns por tentar. Posso escrever em qualquer altura em que
as pessoas não me interrompam. Ou se conseguirmos ser antipáticos. Mas sem
dúvida que a melhor escrita é quando estamos apaixonados. Se não se importar,
preferiria não desenvolver.
George
Plimpton: E a estabilidade financeira? Trata-se de algo que pode prejudicar a
boa escrita?
Hemingway:
Se chegar suficientemente cedo e amarmos tanto a vida como o nosso trabalho, é
preciso ter uma personalidade muito forte para se resistir às tentações. Mas se
a escrita se tiver tornado o nosso principal vício e o nosso maior prazer, só a
morte a poderá parar. Aí, a estabilidade financeira é uma grande ajuda porque não
perdemos tempo com preocupações desse tipo. As preocupações destroem a
capacidade de escrever. Problemas de saúde são maus porque geram preocupações
que nos atacam o subconsciente e destroem as nossas reservas.
George
Plimpton: Consegue lembrar-se do momento exato em que decidiu ser escritor?
Hemingway:
Não, sempre quis ser escritor.
George
Plimpton: Philip Young, na biografia que escreveu sobre si, sugere que o choque
traumático do ferimento de granada que sofreu em 1918, poderá ter tido uma
forte influência em si enquanto escritor. Lembro-me de que em Madrid falou um
pouco acerca dessa tese, tendo-a descartado e acrescentando que achava que o
equipamento do artista não era uma característica adquirida, mas sim herdada,
no sentido Mendeliano.
Hemingway:
É evidente que nesse ano, em Madrid, os meus pensamentos estavam um pouco
conturbados. A única coisa de bom poderá ter sido o facto de ter falado muito
pouco sobre o livro do senhor Young e sobre a sua teoria literária do trauma.
Talvez as duas concussões e uma fratura craniana, nesse ano, me tenham levado a
fazer declarações irresponsáveis. Recordo-me de lhe ter dito que acreditava que
a imaginação poderia resultar de uma experiência racial herdada. Parece bem
enquanto conversa de café pós-concussão, mas é tudo. Então, até ao próximo
trauma libertador, fiquemos por aí. Pode ser? Mas obrigado por não mencionar os
nomes de alguns parentes que eu possa ter implicado. A parte divertida da
conversa é a exploração, mas grande parte dela e tudo que for irresponsável não
deve ser escrito. É que a partir do momento em que alguém a escreve temos que a
justificar. Podemos ter dito algo para confirmar se acreditávamos ou não no que
estávamos a dizer. Quanto ao que disse, os efeitos dos ferimentos variam muito.
Ferimentos simples e sem grandes consequências não têm propriamente relevância.
Por vezes, dão-nos confiança. Ferimentos que causam problemas sérios aos ossos
e aos nervos não são bons para os escritores nem para ninguém.
George
Plimpton: Qual diria ser a melhor prática intelectual para quem quiser
tornar-se escritor?
Hemingway:
Digamos que deveria sair de casa e enforcar-se por ter descoberto que escrever é
incrivelmente difícil. De seguida, dever-se-ia mutilar e ver-se forçado por si
mesmo a escrever o melhor que conseguisse durante o resto da sua vida. Pelo
menos, teria a história do enforcamento como ponto de partida.
George
Plimpton: E as pessoas que ingressaram numa carreira académica? Acha que o
grande número de escritores com lugares no ensino representa um compromisso
para as suas carreiras literárias?
Hemingway: Depende do que pretendemos dizer com compromisso. Estamos a falar de uma mulher que se viu comprometida? Ou do compromisso do homem do estado? Ou do compromisso com o nosso açougueiro ou alfaiate de lhe pagar um pouco mais, só que mais tarde? Um escritor que consegue escrever e ensinar em simultâneo deve fazê-lo. Muitos escritores competentes provaram que é possível. Eu sei que não seria capaz e admiro os que o conseguiram. Ainda assim, penso que talvez a vida académica possa colocar um ponto final nas experiências com o mundo exterior e que isso poderá, eventualmente, limitar o conhecimento do mundo. Mas é verdade que o conhecimento exige maior responsabilidade do escritor e torna a escrita mais difícil. Procurar escrever algo perene é um trabalho a tempo inteiro, mesmo se apenas algumas horas no dia são ocupadas com a escrita em si. Podemos comparar um escritor a um poço. Há tantos tipos de poços como escritores. O importante é que o poço tenha boa água e é melhor retirar uma quantidade de água regularmente do que esvaziar o poço e esperar que se volte a encher. Sei que me estou a afastar da pergunta, mas a pergunta não foi muito interessante. (continua)
Tradução de Jorge Simões
Hemingway: Depende do que pretendemos dizer com compromisso. Estamos a falar de uma mulher que se viu comprometida? Ou do compromisso do homem do estado? Ou do compromisso com o nosso açougueiro ou alfaiate de lhe pagar um pouco mais, só que mais tarde? Um escritor que consegue escrever e ensinar em simultâneo deve fazê-lo. Muitos escritores competentes provaram que é possível. Eu sei que não seria capaz e admiro os que o conseguiram. Ainda assim, penso que talvez a vida académica possa colocar um ponto final nas experiências com o mundo exterior e que isso poderá, eventualmente, limitar o conhecimento do mundo. Mas é verdade que o conhecimento exige maior responsabilidade do escritor e torna a escrita mais difícil. Procurar escrever algo perene é um trabalho a tempo inteiro, mesmo se apenas algumas horas no dia são ocupadas com a escrita em si. Podemos comparar um escritor a um poço. Há tantos tipos de poços como escritores. O importante é que o poço tenha boa água e é melhor retirar uma quantidade de água regularmente do que esvaziar o poço e esperar que se volte a encher. Sei que me estou a afastar da pergunta, mas a pergunta não foi muito interessante. (continua)
Tradução de Jorge Simões
Bela entrevista. Parte II já!
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