domingo, 30 de outubro de 2016

Encontro com Hemingway - 1


Apresentamos, a partir de hoje e de forma sequenciada, uma entrevista com o celebrado autor Ernest Hemingway, ganhador do Nobel da Literatura em 1954 e uma das mais importantes figuras da escrita criativa do século XX. O encontro data de 1958 e tem como entrevistador George Plimpton.

George Plimpton: Sente que as horas que gasta no processo da escrita são agradáveis?
Hemingway: Muito.
George Plimpton: Poder-nos-ia falar sobre esse processo? Quando trabalha? Mantém horários rígidos?
Hemingway: Quando trabalho num livro ou numa história, escrevo todas as manhãs, logo que possível, após o raiar do dia. Não há ninguém que nos perturbe e está fresco ou frio e trabalhamos e aquecemos à medida que escrevemos. Lemos o que escrevemos e, como pausamos sempre num ponto em que sabemos o que vai acontecer a seguir, retomamos a partir daí. Escrevemos até chegarmos a um ponto em que ainda temos inspiração e sabemos como a história vai continuar e paramos e procuramos viver até ao dia seguinte, quando retomamos o trabalho. Podemos, por exemplo, ter começado às seis da manhã e podemos continuar até ao meio-dia ou mesmo antes disso. Quando paramos, sentimo-nos tão vazios, ou simultaneamente nunca vazios mas no processo de ganhar novas energias, como quando fizemos amor com alguém que amamos. Nada nos pode magoar, nada de mau pode acontecer, nada tem significado até ao dia seguinte, quando retomamos o trabalho. Esperar pelo dia seguinte é a parte difícil.
George Plimpton: Consegue esquecer os seus projetos quando está longe da máquina de escrever?
Hemingway: Claro. Mas trata-se de algo que exige disciplina e trata-se de uma disciplina adquirida. Tem que ser.
George Plimpton: Faz alguma reescrita enquanto relê o que escreveu no dia anterior? Ou trata-se de algo que surge mais tarde, quando tudo está terminado?
Hemingway: Todos os dias reescrevo o que escrevi no dia anterior. Quando termino, naturalmente que avanço. Posso voltar a corrigir e a reescrever quando outra pessoa passa o texto à máquina e o vemos escrito dessa maneira. A última oportunidade são as provas. Sinto-me grato por essas diferentes oportunidades.
George Plimpton: Até que ponto reescreve?
Hemingway: Depende. Reescrevi o final de Adeus às Armas, a última página, trinta e nove vezes antes de me dar por satisfeito.
George Plimpton: Foi por causa de algum problema técnico? O que é que o empatou?
Hemingway: Arranjar as palavras certas.
George Plimpton: É a reescrita que aviva a inspiração?
Hemingway: A releitura coloca-nos sempre numa posição em que temos que avançar, sabendo que é o melhor que conseguimos fazer naquele momento. Há sempre inspiração algures.
George Plimpton: Mas há momentos em que a inspiração simplesmente está ausente?
Hemingway: Naturalmente. Mas se tivermos parado num momento em que sabemos o que se segue, podemos avançar. Desde que consigamos começar, tudo está bem. A inspiração acaba por chegar.
George Plimpton: Thornton Wilder fala-nos de técnicas mnemónicas que ajudam o escritor a avançar. Ele diz que certa vez lhe contou que aguçava vinte lápis.
Hemingway: Não acho eu alguma vez tenha tido vinte lápis em simultâneo. Se gastar sete lápis número 2, terei trabalhado bem.
George Plimpton: Em que lugares gostou mais de trabalhar? O hotel Ambos Mundos deve ter sido um deles, tendo em conta o número de livros que lá escreveu. Ou aquilo que o rodeia tem pouca influência no que escreve?
Hemingway: O Ambos Mundos, em Havana, era um ótimo local para trabalhar. O Finca é esplêndido, ou era. Mas trabalhei bem onde quer que tenha sido. Ou seja, consegui trabalhar o melhor que pude em circunstâncias variadas. O telefone e os visitantes é que destroem o trabalho.
George Plimpton: A estabilidade emocional é importante para se trabalhar bem? Certa vez, contou-me que só conseguia escrever bem se estivesse apaixonado. Poderia falar-nos sobre isso?
Hemingway: Que pergunta! Mas parabéns por tentar. Posso escrever em qualquer altura em que as pessoas não me interrompam. Ou se conseguirmos ser antipáticos. Mas sem dúvida que a melhor escrita é quando estamos apaixonados. Se não se importar, preferiria não desenvolver.
George Plimpton: E a estabilidade financeira? Trata-se de algo que pode prejudicar a boa escrita?
Hemingway: Se chegar suficientemente cedo e amarmos tanto a vida como o nosso trabalho, é preciso ter uma personalidade muito forte para se resistir às tentações. Mas se a escrita se tiver tornado o nosso principal vício e o nosso maior prazer, só a morte a poderá parar. Aí, a estabilidade financeira é uma grande ajuda porque não perdemos tempo com preocupações desse tipo. As preocupações destroem a capacidade de escrever. Problemas de saúde são maus porque geram preocupações que nos atacam o subconsciente e destroem as nossas reservas.
George Plimpton: Consegue lembrar-se do momento exato em que decidiu ser escritor?
Hemingway: Não, sempre quis ser escritor.
George Plimpton: Philip Young, na biografia que escreveu sobre si, sugere que o choque traumático do ferimento de granada que sofreu em 1918, poderá ter tido uma forte influência em si enquanto escritor. Lembro-me de que em Madrid falou um pouco acerca dessa tese, tendo-a descartado e acrescentando que achava que o equipamento do artista não era uma característica adquirida, mas sim herdada, no sentido Mendeliano.
Hemingway: É evidente que nesse ano, em Madrid, os meus pensamentos estavam um pouco conturbados. A única coisa de bom poderá ter sido o facto de ter falado muito pouco sobre o livro do senhor Young e sobre a sua teoria literária do trauma. Talvez as duas concussões e uma fratura craniana, nesse ano, me tenham levado a fazer declarações irresponsáveis. Recordo-me de lhe ter dito que acreditava que a imaginação poderia resultar de uma experiência racial herdada. Parece bem enquanto conversa de café pós-concussão, mas é tudo. Então, até ao próximo trauma libertador, fiquemos por aí. Pode ser? Mas obrigado por não mencionar os nomes de alguns parentes que eu possa ter implicado. A parte divertida da conversa é a exploração, mas grande parte dela e tudo que for irresponsável não deve ser escrito. É que a partir do momento em que alguém a escreve temos que a justificar. Podemos ter dito algo para confirmar se acreditávamos ou não no que estávamos a dizer. Quanto ao que disse, os efeitos dos ferimentos variam muito. Ferimentos simples e sem grandes consequências não têm propriamente relevância. Por vezes, dão-nos confiança. Ferimentos que causam problemas sérios aos ossos e aos nervos não são bons para os escritores nem para ninguém.
George Plimpton: Qual diria ser a melhor prática intelectual para quem quiser tornar-se escritor?
Hemingway: Digamos que deveria sair de casa e enforcar-se por ter descoberto que escrever é incrivelmente difícil. De seguida, dever-se-ia mutilar e ver-se forçado por si mesmo a escrever o melhor que conseguisse durante o resto da sua vida. Pelo menos, teria a história do enforcamento como ponto de partida.
George Plimpton: E as pessoas que ingressaram numa carreira académica? Acha que o grande número de escritores com lugares no ensino representa um compromisso para as suas carreiras literárias?
Hemingway: Depende do que pretendemos dizer com compromisso. Estamos a falar de uma mulher que se viu comprometida? Ou do compromisso do homem do estado? Ou do compromisso com o nosso açougueiro ou alfaiate de lhe pagar um pouco mais, só que mais tarde? Um escritor que consegue escrever e ensinar em simultâneo deve fazê-lo. Muitos escritores competentes provaram que é possível. Eu sei que não seria capaz e admiro os que o conseguiram. Ainda assim, penso que talvez a vida académica possa colocar um ponto final nas experiências com o mundo exterior e que isso poderá, eventualmente, limitar o conhecimento do mundo. Mas é verdade que o conhecimento exige maior responsabilidade do escritor e torna a escrita mais difícil. Procurar escrever algo perene é um trabalho a tempo inteiro, mesmo se apenas algumas horas no dia são ocupadas com a escrita em si. Podemos comparar um escritor a um poço. Há tantos tipos de poços como escritores. O importante é que o poço tenha boa água e é melhor retirar uma quantidade de água regularmente do que esvaziar o poço e esperar que se volte a encher. Sei que me estou a afastar da pergunta, mas a pergunta não foi muito interessante. (continua)

Tradução de Jorge Simões

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