Pão e poesia
Na minha escola havia uma matéria chamada “Biblioteca”, adorada por todos os alunos.
O motivo de tanta adoração não é esse que a nossa esperança literária acalenta, o amor pela leitura. Era de outra ordem: o amor pelo ócio. Ou melhor, pela liberdade, para não soarmos tão vagabundos. Durante uma hora, não precisávamos de copiar textos do quadro, nem fazer exercícios, nem decorar regras e sistemas, nem nada. Estávamos livres. Era assim, ao menos, que a maioria compreendia a matéria. Íamos para a biblioteca, e folheávamos revistas, e batíamos papo, e cantávamos baixinho, e dormíamos.
Ler? Ah, sim, estávamos rodeados de livros. Havia inclusive uma simpática bibliotecária que sempre nos perguntava, “O que vocês vão ler hoje?”. A maioria mostrava, sorridente, uma revista: de quadrinhos, de cinema, de fofocas. A simpática bibliotecária balançava a cabeça, em reprovação afetuosa, e seguia adiante. Quando passava por mim, piscava o olho e me dizia baixinho, “Chegou aquele livro de poesia”, tão baixinho que só eu ouvia, só eu era atingida por aquela rajada de vento entre as mesas da biblioteca, naquela hora repleta de risadas abafadas e sussurros incontroláveis. O livro em questão era da Cecília Meireles.
Na época, eu estava mortalmente apaixonada por um menino da escola. E como o menino nem desconfiava da minha existência, eu acabei mais apaixonada ainda, pela poesia. Procurei-te em vão pela terra, perto do céu, por sobre o mar. Se não chegas nem em sonho, porque insisto em te imaginar?, era o verso do poema Meu sonho, de Cecília, que eu repetia e repetia e repetia sem cansaço nem descanso. Era uma música, para mim. Com o mesmo poder melódico de me transportar, comover e transformar. De alegre, ficava triste. De tanta tristeza, me alegrava.
Em outra aula, a bibliotecária simpática não me viu mais entre as risadas e as revistas. Lá estava eu entre as estantes, menina arrastando pernas e esperanças, diante de uma plaquinha na qual estava escrito “Poesia brasileira”. Havia pego por acaso um livro. Amar o perdido/ deixa confundido/ este coração. E por acaso os meus olhos haviam caído naquela página. As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão. E lia palavras que eu não entendia imediatamente o significado (o que é tangível?, perguntei à minha mãe naquela noite, durante o jantar), mas as entendia completamente numa outra ordem de entendimento. Numa ordem esquisita de taquicardia e ardor no rosto. Mas as coisas findas/ muito mais que lindas/ essas ficarão. De onde estava, a bibliotecária simpática não podia ver: eu suspirava. Lendo Memória, poema de Carlos Drummond de Andrade, eu esquecia aos poucos o menino da escola, mas acendia e reacendia eternamente o meu amor. Assustada, compreendi, também numa outra ordem de compreensão (de mãos frias e tropeços ofegantes) que as palavras têm temperatura.
Elas esquentam e esfriam como qualquer coisa viva.
Comecei a perder a memória poética quando entrei para a Faculdade de Letras. Precisava de tempo para estudar literatura, teoria literária e outras disciplinas que enchiam as minhas prateleiras de livros. Livros sobre algum escritor, ou algum movimento literário, ou alguma teoria, ou algum teórico, ou a respeito de certo aspecto da literatura tal, destrinçado por, ou a obra de um escritor de acordo com, ou fragmentos de, comentados por, ou ensaios de sobre.
Quando me formei, já não conseguia mais repetir de coração nenhum poema. Um único verso que fosse, eu não sabia. Afinal, era uma moça estudada. Foi uma pessoa que não lembro agora, provavelmente alguém desavisado, que me presenteou, na minha formatura, com um livro de poesia. Da primeira vez em que me assassinaram, li, trémula, com o diploma nas mãos. E agora? Eu perguntava, apertando com força Mário Quintana.
Só então eu percebia que algo precioso havia se escapado de mim. E agora? Formada, fui dar aulas de literatura brasileira para o Ensino Médio, com a viva esperança de trabalhar com a leitura e a escrita. No entanto, apenas um semestre foi o suficiente para me desesperançar. Da primeira vez em que me assassinaram, repeti o verso de Quintana, assim que saí da sala, após a prova na qual era muito importante saber qual era o período literário representado por Cecília Meireles, perdi o jeito de sorrir que eu tinha, e se Carlos Drummond de Andrade podia ser considerado modernista, Depois, de cada vez que me mataram/ foram levando qualquer coisa minha...
Quando saí desse emprego, fiquei rodando horas pela cidade até me deparar enfim com uma livraria. Entrei, sôfrega. “Poesia”, pedi ao livreiro, como se pedisse num bar uma bebida. Com pedaços de mim monto um ser atónito, era o Manoel de Barros que me falava. Li e reli o verso, sorvendo das palavras o espanto, a alegria, a angústia de uma menina na biblioteca, o pousar de mãos de um senhor em seus cabelos brancos, o saltitar de um menino atravessando a rua, a moça que, de brincadeira, se escondia do namorado. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação, o poeta cantava, e eu repetia, repetia. Tentava recuperar algo que sentia perdido, e que talvez só a poesia…
Talvez, uma capacidade de me enternecer.
Cláudia Lage
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