Adam Begley: Como nasceu Amesterdão?
Ian McEwan: Desenvolveu-se a partir
de uma piada recorrente que tinha com o meu velho amigo e companheiro de hiking, Ray Dolan. Especulávamos despreocupadamente sobre um acordo que poderíamos fazer: se algum de nós começasse a
adoecer com algo como Alzheimer, em vez de deixar o seu amigo sucumbir num
declínio humilhante, o outro levá-lo-ia a Amesterdão para fazer eutanásia
legal. Assim, de cada vez que um de nós se esquecia de algum equipamento
fundamental para o hiking, ou se
aparecesse no aeroporto no dia errado – sabes, o tipo de coisa que começa a
suceder quando estás nos quarenta e tais – o outro dizia: “Bom, tens que ir para
Amesterdão!” Certa vez em que caminhávamos pelo Lake District – por acaso, no
caminho que a personagem Clive Linley toma -, pensei em duas personagens que
poderiam chegar a um tal acordo, zangarem-se e atraírem-se simultaneamente para
Amesterdão para um assassínio mútuo. Uma trama cómica bastante improvável.
Nessa altura, ia a meio de O Fardo do
Amor. Esbocei a ideia nessa noite e pu-la de lado para quando me
apetecesse. Só quando comecei a escrevê-la é que as personagens surgiram.
Depois, foi como se adquirissem vida própria.
AB: Amesterdão é muito diferente dos teus romances anteriores.
IME: Os quatro romances que o
precederam – A Criança no Tempo, O Inocente, Cães Pretos e O Fardo do Amor
– cresceram a partir do desejo que senti de explorar determinadas ideias. Comparativamente,
Amesterdão fez-me sentir livre e
irresponsável. Tinha um esquema simples e segui-o para ver onde me conduzia.
Alguns leitores consideraram o romance uma diversão leve mas, para mim, mesmo
nessa altura, pareceu um ponto de viragem comparável ao de The Child in Time.
Achei que estava a dar mais espaço às personagens. Havia algumas ambições
intelectuais de que me queria afastar. Não poderia ter escrito Expiação se não tivesse antes escrito Amesterdão.
AB: Voltando a Graham Greene –
ele costumava estabelecer uma distinção entre os seus romances sérios e os seus
“entretenimentos”. Em qual das categorias colocarias Amesterdão?
IME: Acho que Greene acabou
por abandonar essa distinção e conseguimos perceber porquê. Mas percebo a
ideia. Senti e continuo a sentir um prazer enorme na escrita de Amesterdão. Foi bem recebido, mas o seu
infortúnio (em oposição ao meu) foi ter ganho o Booker Prize, altura em que
algumas pessoas o começaram a desconsiderar. Mais que não fosse, por isso,
gostaria que fosse julgado seriamente em conjunto com tudo o resto que eu tenha
escrito. É certo que não lhe chamaria um “entretenimento” e que esperaria um
julgamento menos severo.
AB: Como começou Expiação? Foi
com a Briony?
IME: A Cecilia surgiu
primeiro. Tal como sucedeu com O Fardo do
Amor, tratou-se de um romance nascido de muitos meses de esboços e
tentativas prévias. Certa manhã, escrevi umas seiscentas palavras que
descreviam uma jovem a entrar numa sala de estar com um ramalhete de flores
silvestres na mão, à procura de um vaso. Ela apercebe-se da presença de um
jovem que jardina no exterior e deseja, simultaneamente, vê-lo e evitá-lo. Por
razões que não conseguia racionalizar, sabia que tinha finalmente começado um
romance.
AB: Porque é isso que nos
capta, a história de amor?
IME: Não fazia ideia.
Lentamente, compus um capítulo – Cecilia e Robbie dirigem-se à fonte, o vaso
parte-se, ela despe-se e mergulha na água para tentar recuperar os bocados,
vai-se embora sem uma palavra. Nessa altura, parei e deixei-me ficar a matutar durante uma seis semanas. Onde fica isto? Quando? Quem são eles? O que é que
tenho? De seguida, recomecei e escrevi o capítulo em que Briony encena uma
peça com os primos. Quando terminei, o romance já se estava a delinear.
Começava a surgir uma casa de família e tinha noções muito vagas de que
Dunquerque e o hospital de St. Thomas só apareceriam muito adiante. De modo
fundamental, compreendi que Briony era a autora de ambos os capítulos, que ia
cometer um erro terrível e que escrever uma série de esboços ao longo da sua
vida seria a sua forma de fazer a sua expiação. Mais tarde, quando já tinha
completado a primeira parte, troquei a ordem desses dois capítulos e
reescrevi-os uma série de vezes.
AB: Que tipo de romances achas
que Briony escrevia quando não estava a escrever Expiação – quando não estava a fazer a sua penitência?
IME: Ela era uma espécie de
Elizabeth Bowen em The Heat of the Day,
com um toque da Rosamond Lehmann em Dusty
Answer e, nas suas primeiras tentativas, um dedo de Virginia Woolf. Num esboço
inicial, escrevi uma nota biográfica destinada a ser incluída no final do
livro. Depois, decidi-me contra. Mas aqui está ela. A questão com Greene (está permanentemente
a surgir) é que estava sempre preparado para dar um toque amigável a um
escritor mais novo. Foi em julho de 2001 que introduzi as minhas últimas
alterações às provas.
Sobre a autora: Briony Tallis
nasceu em 1922, no Surrey, filha de um funcionário público senior. Frequentou a
Roedean School e, em 1940, começou a praticar enfermagem. A sua experiência
enquanto enfermeira durante a Guerra trouxe-lhe o material para o seu primeiro
romance, Alice Riding, publicado em 1948 e vencedor do Fitzrovia Prize de
ficção desse mesmo ano. O seu romance seguinte, Soho Solstice, foi louvado por
Elizabeth Bowen como “uma joia sombria de perceção psicológica”, enquanto
Graham Grene a descreveu como “um dos mais interessantes talentos a ter surgido
desde a Guerra”. Outros romances e coleções de short stories consolidaram a sua
reputação nos anos cinquenta. Em 1962 publicou A Barn in Steventon, um estudo das encenações teatrais domésticas
na infância de Jane Austen. O seu sexto romance, The Ducking Stool, foi um êxito de vendas em 1965 e foi adaptado
com sucesso para o cinema, num filme com Julie Christie. Depois disso, a
reputação de Briony Tallis entrou em declínio até ao momento em que o seu
trabalho foi divulgado a uma geração mais jovem, no final dos anos setenta.
Faleceu em julho de 2001.
AB: Achas que deste uma vida
demasiadamente fácil a Briony quando lhe concedeste uma vida longa e sucesso
literário?
IME: Ela nunca agiu com
malícia e, além disso, nas suas circunstâncias, com muito em que pensar, uma
vida longa não terá sido uma grande recompensa. Os verdadeiros vilões, Paul e
Lola Marshall, conheceram o sucesso, a felicidade e tiveram vidas longas. O realismo
psicológico exige que, por vezes, os maus prosperem.
AB: Cresceste a ouvir o teu
pai contar histórias sobre ter sido evacuado de Dunquerque?
IME: Sim. Nos seus últimos
dias (morreu em 1996) pensava muito na retirada para Dunquerque e narrou as
suas experiências vezes sem conta. Tive pena de nunca lhe ter podido mostrar a
minha versão. Suponho que a sua morte tenha ficado refletida de forma
inconsciente no número de pais ausentes do romance. Os homens que ficaram para
trás em Dunquerque devem ter tido a noção de que os seus próprios pais tinham
morrido ou lutado nessa mesma nesga do norte de França. O meu pai acabou no
mesmo hospital, o Alder Hey, em Liverpool, onde o seu pai tinha recebido tratamento
em 1918.
AB: Não falámos muito sobre O Sonhador. Como foi a mudança de
escrever para crianças depois de Cães
Pretos?
IME: Não é de todo muito
diferente.
AB: Quais foram as tuas regras
de base?
IME: Menções nenhumas a
impostos, nada de cenas de sexo explícito. Claro que há temáticas que se
evitam. Mas há muito poucas coisas que não se possam debater com alguém de dez
anos de idade, desde que se encontre o nível de linguagem correto. E sempre
gostei de um tipo de prosa claro, preciso e simples, do género que penso poder
ser entendido pelas crianças. Evitei qualquer tipo de moralidade pesada – não
gosto da ficção para crianças que lhes diz como se devem comportar. Escrevi os
capítulos como histórias curtas para a hora de dormir e li-as aos meus filhos.
Incorporei vários detalhes familiares da vida em casa – o nosso gato, a
escrivaninha suja na cozinha e por aí adiante. Os rapazes ajudaram com
sugestões e, mais tarde, viram as provas, o design
da capa, as críticas. Viram como se faz um livro. Nessa altura, estava a
trabalhar em Cães Pretos, pelo que se
tratou de uma diversão muito agradável.
AB: Em A Criança no Tempo, Stephen diz que os melhores livros para
crianças têm uma qualidade, que é a invisibilidade. Pensaste nisso, nessa
expressão, quando te sentaste para escrever O Sonhador?
IME: Não me recordo, mas sem
dúvida que se trata de uma meta a atingir. As crianças não se vão sentar,
relaxar e admirar a graça e a densidade da nossa imagética. Querem que a
linguagem funcione e os transporte para a ação. Querem saber o que está a
acontecer. Talvez esse tipo de invisibilidade pertença a uma idade da inocência
perdida, sendo assim ainda mais apropriada para um livro infantil.
AB: És, basicamente, o único
membro da tua geração que parece aspirar a isso. Temos a demonstração verbal de
Amis, a exuberância de Rushdie, a erudição de Barnes.
IME: Bom, calma aí, estávamos
a discutir ficção infantil. Depois de um século de modernismo, das suas
experiências e da sua queda, o tipo de invisibilidade de que falámos é
impossível na escrita séria. O meu ideal seria uma tela de amarelo pálido a que
se soma uma série de golpes vívidos. Esses golpes levar-nos-iam diretamente
para a prosa e, idealmente, impulsionar-nos-iam com energia renovada para o
outro lado da coisa de que se falasse, para a própria coisa. Termos ambas as
coisas… mas não passa de uma aspiração.
AB: Até que ponto é que isto
tem a ver com a autoconsciência na escrita?
IME: Por vezes, sinto que cada
frase contém um comentário fantasma nos seus próprios processos. Isso nem
sempre ajuda, mas não acho que lhe possamos escapar. Na melhor das
hipóteses, podemos tomar o facto como garantido, em vez de ficarmos escravos da
autorreferência, e permanecermos igualmente fieis às capacidades sensuais e
telepáticas da linguagem na medida em que transfere pensamentos e sentimentos
da mente de alguém para outra pessoa.
AB: Achas que poderás vir a
escrever mais livros como O Sonhador,
tanto para crianças como para adultos?
IME: Quando me perguntam isso,
ou sobre se escreverei um texto dramático, minto sempre e digo automaticamente
que sim.
AB: Porquê?
IME: Não quero pôr de lado a
possibilidade. Mas também sei que, entre livros, simplesmente esperarei para
ver o que surge. Trata-se de um processo que não se pode ter, nem se quer ter,
sob total controlo consciente. Claro que gostaria de escrever uma peça, ou mais
um livro infantil, ou uma sequência de sonetos estonteante. Mas o que significa
isso realmente? Significa que gostaria de já os ter escrito. Faz-me pensar num
sonho recorrente que tenho. Estou à secretária, no meu escritório, e sinto-me
especialmente bem. Abro uma gaveta e vejo, diante de mim, um romance que
terminei no último verão e do qual me esqueci completamente por andar tão
ocupado. Pego nele e vejo
imediatamente que é brilhante. Uma obra-prima! Lembro-me de tudo, de
todo o trabalho que me deu, e arrumo-o. É excelente e sinto-me muito feliz por
o ter encontrado.
AB: Há algum toque de humor nisso, como, por exemplo,
o romance ter sido assinado por Martin Amis?
IME: Não, não. É um sonho feliz. É meu.
Tudo o que tenho a fazer é tentar não acordar.
Tradução de Jorge Simões
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