segunda-feira, 20 de junho de 2016

Encontro com Ian McEwan - 5


Adam Begley: Como nasceu Amesterdão?
Ian McEwan: Desenvolveu-se a partir de uma piada recorrente que tinha com o meu velho amigo e companheiro de hiking, Ray Dolan. Especulávamos despreocupadamente sobre um acordo que poderíamos fazer: se algum de nós começasse a adoecer com algo como Alzheimer, em vez de deixar o seu amigo sucumbir num declínio humilhante, o outro levá-lo-ia a Amesterdão para fazer eutanásia legal. Assim, de cada vez que um de nós se esquecia de algum equipamento fundamental para o hiking, ou se aparecesse no aeroporto no dia errado – sabes, o tipo de coisa que começa a suceder quando estás nos quarenta e tais – o outro dizia: “Bom, tens que ir para Amesterdão!” Certa vez em que caminhávamos pelo Lake District – por acaso, no caminho que a personagem Clive Linley toma -, pensei em duas personagens que poderiam chegar a um tal acordo, zangarem-se e atraírem-se simultaneamente para Amesterdão para um assassínio mútuo. Uma trama cómica bastante improvável. Nessa altura, ia a meio de O Fardo do Amor. Esbocei a ideia nessa noite e pu-la de lado para quando me apetecesse. Só quando comecei a escrevê-la é que as personagens surgiram. Depois, foi como se adquirissem vida própria.
AB: Amesterdão é muito diferente dos teus romances anteriores.
IME: Os quatro romances que o precederam – A Criança no Tempo, O Inocente, Cães Pretos e O Fardo do Amor – cresceram a partir do desejo que senti de explorar determinadas ideias. Comparativamente, Amesterdão fez-me sentir livre e irresponsável. Tinha um esquema simples e segui-o para ver onde me conduzia. Alguns leitores consideraram o romance uma diversão leve mas, para mim, mesmo nessa altura, pareceu um ponto de viragem comparável ao de The Child in Time. Achei que estava a dar mais espaço às personagens. Havia algumas ambições intelectuais de que me queria afastar. Não poderia ter escrito Expiação se não tivesse antes escrito Amesterdão.
AB: Voltando a Graham Greene – ele costumava estabelecer uma distinção entre os seus romances sérios e os seus “entretenimentos”. Em qual das categorias colocarias Amesterdão?
IME: Acho que Greene acabou por abandonar essa distinção e conseguimos perceber porquê. Mas percebo a ideia. Senti e continuo a sentir um prazer enorme na escrita de Amesterdão. Foi bem recebido, mas o seu infortúnio (em oposição ao meu) foi ter ganho o Booker Prize, altura em que algumas pessoas o começaram a desconsiderar. Mais que não fosse, por isso, gostaria que fosse julgado seriamente em conjunto com tudo o resto que eu tenha escrito. É certo que não lhe chamaria um “entretenimento” e que esperaria um julgamento menos severo.
AB: Como começou Expiação? Foi com a Briony?
IME: A Cecilia surgiu primeiro. Tal como sucedeu com O Fardo do Amor, tratou-se de um romance nascido de muitos meses de esboços e tentativas prévias. Certa manhã, escrevi umas seiscentas palavras que descreviam uma jovem a entrar numa sala de estar com um ramalhete de flores silvestres na mão, à procura de um vaso. Ela apercebe-se da presença de um jovem que jardina no exterior e deseja, simultaneamente, vê-lo e evitá-lo. Por razões que não conseguia racionalizar, sabia que tinha finalmente começado um romance.
AB: Porque é isso que nos capta, a história de amor?
IME: Não fazia ideia. Lentamente, compus um capítulo – Cecilia e Robbie dirigem-se à fonte, o vaso parte-se, ela despe-se e mergulha na água para tentar recuperar os bocados, vai-se embora sem uma palavra. Nessa altura, parei e deixei-me ficar a matutar durante uma seis semanas. Onde fica isto? Quando? Quem são eles? O que é que tenho? De seguida, recomecei e escrevi o capítulo em que Briony encena uma peça com os primos. Quando terminei, o romance já se estava a delinear. Começava a surgir uma casa de família e tinha noções muito vagas de que Dunquerque e o hospital de St. Thomas só apareceriam muito adiante. De modo fundamental, compreendi que Briony era a autora de ambos os capítulos, que ia cometer um erro terrível e que escrever uma série de esboços ao longo da sua vida seria a sua forma de fazer a sua expiação. Mais tarde, quando já tinha completado a primeira parte, troquei a ordem desses dois capítulos e reescrevi-os uma série de vezes.
AB: Que tipo de romances achas que Briony escrevia quando não estava a escrever Expiação – quando não estava a fazer a sua penitência?
IME: Ela era uma espécie de Elizabeth Bowen em The Heat of the Day, com um toque da Rosamond Lehmann em Dusty Answer e, nas suas primeiras tentativas, um dedo de Virginia Woolf. Num esboço inicial, escrevi uma nota biográfica destinada a ser incluída no final do livro. Depois, decidi-me contra. Mas aqui está ela. A questão com Greene (está permanentemente a surgir) é que estava sempre preparado para dar um toque amigável a um escritor mais novo. Foi em julho de 2001 que introduzi as minhas últimas alterações às provas.

Sobre a autora: Briony Tallis nasceu em 1922, no Surrey, filha de um funcionário público senior. Frequentou a Roedean School e, em 1940, começou a praticar enfermagem. A sua experiência enquanto enfermeira durante a Guerra trouxe-lhe o material para o seu primeiro romance, Alice Riding, publicado em 1948 e vencedor do Fitzrovia Prize de ficção desse mesmo ano. O seu romance seguinte, Soho Solstice, foi louvado por Elizabeth Bowen como “uma joia sombria de perceção psicológica”, enquanto Graham Grene a descreveu como “um dos mais interessantes talentos a ter surgido desde a Guerra”. Outros romances e coleções de short stories consolidaram a sua reputação nos anos cinquenta. Em 1962 publicou A Barn in Steventon, um estudo das encenações teatrais domésticas na infância de Jane Austen. O seu sexto romance, The Ducking Stool, foi um êxito de vendas em 1965 e foi adaptado com sucesso para o cinema, num filme com Julie Christie. Depois disso, a reputação de Briony Tallis entrou em declínio até ao momento em que o seu trabalho foi divulgado a uma geração mais jovem, no final dos anos setenta. Faleceu em julho de 2001.

AB: Achas que deste uma vida demasiadamente fácil a Briony quando lhe concedeste uma vida longa e sucesso literário?
IME: Ela nunca agiu com malícia e, além disso, nas suas circunstâncias, com muito em que pensar, uma vida longa não terá sido uma grande recompensa. Os verdadeiros vilões, Paul e Lola Marshall, conheceram o sucesso, a felicidade e tiveram vidas longas. O realismo psicológico exige que, por vezes, os maus prosperem.
AB: Cresceste a ouvir o teu pai contar histórias sobre ter sido evacuado de Dunquerque?
IME: Sim. Nos seus últimos dias (morreu em 1996) pensava muito na retirada para Dunquerque e narrou as suas experiências vezes sem conta. Tive pena de nunca lhe ter podido mostrar a minha versão. Suponho que a sua morte tenha ficado refletida de forma inconsciente no número de pais ausentes do romance. Os homens que ficaram para trás em Dunquerque devem ter tido a noção de que os seus próprios pais tinham morrido ou lutado nessa mesma nesga do norte de França. O meu pai acabou no mesmo hospital, o Alder Hey, em Liverpool, onde o seu pai tinha recebido tratamento em 1918.
AB: Não falámos muito sobre O Sonhador. Como foi a mudança de escrever para crianças depois de Cães Pretos?
IME: Não é de todo muito diferente.
AB: Quais foram as tuas regras de base?
IME: Menções nenhumas a impostos, nada de cenas de sexo explícito. Claro que há temáticas que se evitam. Mas há muito poucas coisas que não se possam debater com alguém de dez anos de idade, desde que se encontre o nível de linguagem correto. E sempre gostei de um tipo de prosa claro, preciso e simples, do género que penso poder ser entendido pelas crianças. Evitei qualquer tipo de moralidade pesada – não gosto da ficção para crianças que lhes diz como se devem comportar. Escrevi os capítulos como histórias curtas para a hora de dormir e li-as aos meus filhos. Incorporei vários detalhes familiares da vida em casa – o nosso gato, a escrivaninha suja na cozinha e por aí adiante. Os rapazes ajudaram com sugestões e, mais tarde, viram as provas, o design da capa, as críticas. Viram como se faz um livro. Nessa altura, estava a trabalhar em Cães Pretos, pelo que se tratou de uma diversão muito agradável.
AB: Em A Criança no Tempo, Stephen diz que os melhores livros para crianças têm uma qualidade, que é a invisibilidade. Pensaste nisso, nessa expressão, quando te sentaste para escrever O Sonhador?
IME: Não me recordo, mas sem dúvida que se trata de uma meta a atingir. As crianças não se vão sentar, relaxar e admirar a graça e a densidade da nossa imagética. Querem que a linguagem funcione e os transporte para a ação. Querem saber o que está a acontecer. Talvez esse tipo de invisibilidade pertença a uma idade da inocência perdida, sendo assim ainda mais apropriada para um livro infantil.
AB: És, basicamente, o único membro da tua geração que parece aspirar a isso. Temos a demonstração verbal de Amis, a exuberância de Rushdie, a erudição de Barnes.
IME: Bom, calma aí, estávamos a discutir ficção infantil. Depois de um século de modernismo, das suas experiências e da sua queda, o tipo de invisibilidade de que falámos é impossível na escrita séria. O meu ideal seria uma tela de amarelo pálido a que se soma uma série de golpes vívidos. Esses golpes levar-nos-iam diretamente para a prosa e, idealmente, impulsionar-nos-iam com energia renovada para o outro lado da coisa de que se falasse, para a própria coisa. Termos ambas as coisas… mas não passa de uma aspiração.
AB: Até que ponto é que isto tem a ver com a autoconsciência na escrita?
IME: Por vezes, sinto que cada frase contém um comentário fantasma nos seus próprios processos. Isso nem sempre ajuda, mas não acho que lhe possamos escapar. Na melhor das hipóteses, podemos tomar o facto como garantido, em vez de ficarmos escravos da autorreferência, e permanecermos igualmente fieis às capacidades sensuais e telepáticas da linguagem na medida em que transfere pensamentos e sentimentos da mente de alguém para outra pessoa.
AB: Achas que poderás vir a escrever mais livros como O Sonhador, tanto para crianças como para adultos?
IME: Quando me perguntam isso, ou sobre se escreverei um texto dramático, minto sempre e digo automaticamente que sim.
AB: Porquê?
IME: Não quero pôr de lado a possibilidade. Mas também sei que, entre livros, simplesmente esperarei para ver o que surge. Trata-se de um processo que não se pode ter, nem se quer ter, sob total controlo consciente. Claro que gostaria de escrever uma peça, ou mais um livro infantil, ou uma sequência de sonetos estonteante. Mas o que significa isso realmente? Significa que gostaria de já os ter escrito. Faz-me pensar num sonho recorrente que tenho. Estou à secretária, no meu escritório, e sinto-me especialmente bem. Abro uma gaveta e vejo, diante de mim, um romance que terminei no último verão e do qual me esqueci completamente por andar tão ocupado. Pego nele e vejo imediatamente que é brilhante. Uma obra-prima! Lembro-me de tudo, de todo o trabalho que me deu, e arrumo-o. É excelente e sinto-me muito feliz por o ter encontrado.
AB: Há  algum toque de humor nisso, como, por exemplo, o romance ter sido assinado por Martin Amis?
IME: Não, não. É um sonho feliz. É meu. Tudo o que tenho a fazer é tentar não acordar.

Tradução de Jorge Simões

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