terça-feira, 5 de abril de 2016

Encontro com Ian McEwan - 2


Adam Begley: Homemade é a história de abertura da tua primeira colecção – é aquela história com o narrador adolescente que engana a sua irmã mais nova e a leva a praticar incesto.
Ian McEwan: Pretendia ser uma paródia de um narrador do tipo Henry Miller, cuja gabarolice sexual se estendia por frases que ocupavam parágrafos inteiros. Foi também uma vénia ao Portnoy de Philip Roth.
AB: Homemade apresenta alguns tópicos de escolha – coito, incesto, autoabuso. Virgindade espoliada. Alguma vez lamentaste ter começado com tamanho estrondo?
IME: Na altura foi divertido. Hoje em dia, tem os seus contras ocasionais, essa coisa do Ian McAbro. Às vezes, acho que nunca conseguirei escapar à minha reputação do início. Mesmo uma crítica reflexiva do Updike sobre Expiação foi marcada, à maneira dos tablóides, pelo The New Yorker como “Lust and Disgust” (Luxúria e Repulsa).
AB: Quando publicaste as primeiras histórias consideraste-te ousado?
IME: Mais impaciente do que ousado. De qualquer modo, a conversa entre os meus amigos era de tal forma escabrosa… Todos tínhamos lido o Burroughs e o Roth e o Genet e o Joyce, tudo se podia dizer e já tinha sido dito. Não me considerei um iconoclasta. Na verdade, achava que escrevia uma prosa bastante educada e conservadora. É verdade que pensava que havia um certo aborrecimento limitativo na ficção inglesa, com as suas nuances da vida de todos os dias e todas as tonalidades cinzentas – minúcias do vestuário, do sotaque, da classe social. Os códigos sociais, a forma como os podemos manipular ou sermos destruídos por eles. É um campo fértil, claro, mas eu não sabia nada sobre isso nem queria ter nada a ver com isso.
AB: Por causa dos teus antecedentes?
IME: Havia algo de curiosamente dissociado nos meus antecedentes. Quando o meu pai foi promovido, a minha família entrou numa terra de ninguém em termos de classe, já não fazíamos parte dos soldados normais, mas também não éramos exactamente elementos da classe dos oficiais. O meu colégio interno era uma experiência do sector público, destinada a fazer com que rapazes oriundos do operariado de Londres ascendessem à classe média culta. Depois, frequentei duas universidades que estavam, pelo menos em termos ingleses, agressivamente desclassificadas. Não tinha nenhum lugar especial ou sentimento de lealdade para com esses estratos intrincados e a minha ficção inicial foi escrita num estado de total indiferença a tudo isso. O meu fascínio por Kafka levou-me a pensar que a ficção mais interessante envolvia personagens que podiam viver livres de quaisquer circunstâncias históricas. Mas é claro que ninguém vive assim. Os críticos ingleses foram céleres em classificar as minhas personagens como pertencentes à classe média-baixa. É útil, como diria Larkin, podermos aprender com isso.
AB: E as crianças? Elas podem existir à margem da história. Há muitas em Primeiro Amor, Últimos Ritos.
IME: É verdade, não temos que descrever os seus trabalhos, nem os casamentos e divórcios.
AB: Tiveste outras razões para escrever sobre crianças?
IME: Um escritor de vinte e dois anos poderá sentir-se inibido por falta de experiência útil. A infância e a adolescência eram algo que eu conhecia. Inúmeros escritores, no início da carreira, passam por alguma forma de recapitulação imaginativa. As perceções da infância são de tal modo brilhantes que as acho difíceis de esquecer. Entram em cena se conseguirmos relaxar a nossa atenção o suficiente – não têm que ser relembradas com esforço; estão simplesmente disponíveis.
AB: Um dos aspetos maiores de Expiação é o ponto de vista de Briony nos capítulos iniciais, quando ainda é uma rapariguinha precoce com vontade de escrever e um gosto perigoso pelo melodrama. Sentiste que imaginar o mundo na perspetiva de uma criança foi como regressar a alguma coisa?
IME: Pareceu-me uma imersão muito mais profunda. Não querer chocar os leitores ou cair no grotesco permite uma muito maior liberdade em termos psicológicos. A criação de crianças na ficção é sempre um problema – o ponto de vista restrito pode tornar-se um garrote. Queria conseguir representar a mente de uma criança ao mesmo tempo que usava todos os recursos de uma linguagem adulta complexa – tal como James faz em What Maisie Knew. Não queria as limitações de um vocabulário infantil. Joyce faz isso nas páginas iniciais de A Portrait of the Artist as a Young Man. Todos tentámos imitá-lo. Deixa-nos suspensos do universo sensorial e linguístico de um rapazinho e a magia refulge – e, depois, desaparece, tal como a infância. Joyce avança e a linguagem evolui. A minha forma de ultrapassar esse problema foi fazer de Briony a minha “autora” e permitir-lhe descrever a sua infância do interior, mas na linguagem do romancista maduro.
AB: Até que ponto eras notado antes da publicação de O Jardim de Cimento (The Cement Garden)?
IME: Desproporcionalmente. Em meados dos anos setenta, quando Amis e eu começámos, não havia muitos novos romancistas. Nós atraímos todas as atenções.
AB: Nessa altura, já tinhas desenvolvido uma rotina de escrita regular?
IME: Começava a escrever todos os dias às nove e meia. Herdei a ética de trabalho do meu pai – independentemente do que tivesse feito na noite anterior, levantava-se sempre às sete. Durante os quarenta e oito anos que passou no exército não faltou um só dia.
Nos anos setenta, costumava trabalhar numa mesinha do meu quarto. Escrevia à mão e usava uma caneta de tinta permanente. Depois, na máquina de escrever, fazia um esboço, fazia escolhas e reescrevia. Certa vez, paguei a um profissional para me passar o texto à máquina, mas senti que faltavam coisas que, se tivesse sido eu a escrever, teria modificado. A meio dos anos oitenta, converti-me alegremente aos computadores. O processamento em Word é mais íntimo, mais próximo do pensamento. Se recapitular, a máquina de escrever parece uma obstrução mecânica grosseira. Gosto da natureza provisória do material não impresso que se guarda na memória do computador – como um pensamento não verbalizado. Gosto de poder continuar a trabalhar frases ou passagens enquanto quiser e do modo como esta máquina fiel se recorda de todas as minhas notazinhas e lembretes. Até ao momento, claro, em que o trabalho vai todo ao ar.
AB: O que é, para ti, um dia frutífero?
IME: Procuro escrever cerca de seiscentas palavras por dia e espero escrever mil, pelo menos, se estiver mais entusiasmado.
AB: Na introdução de A Move Abroad, escreves “Há um certo grau de prazer na escrita criativa que não é assimilado, nem remotamente, pela teoria da literatura.” Podes dar-me um exemplo disso?
IME: O prazer está na surpresa. Pode ser algo tão pequeno como um casamento feliz de um nome com um adjectivo. Ou toda uma nova cena, ou o surgir repentino de uma personagem não planeada que simplesmente cresce a partir de uma expressão. A crítica literária, que procura o sentido, nunca consegue abarcar o facto de que algumas coisas se encontram numa dada página apenas porque deram prazer ao escritor. Um escritor cuja manhã decorre sem problemas, cujas frases se estão a constituir bem, experimenta um prazer calmo e privado. Esse prazer liberta uma riqueza de pensamento que pode espoletar novas surpresas. Os escritores anseiam por esses momentos, por essas sessões. Citando a segunda página de Expiação, é o ponto mais elevado no cumprimento de um projeto. Nenhuma outra coisa – uma boa festa de lançamento, muitos leitores, críticas positivas – se lhe aproxima em termos de satisfação.
AB: Na introdução de The Imitation Game escreves acerca da tua inveja relativamente a quem pertence à indústria do cinema com as suas reuniões urgentes, sempre a correr de um lado para o outro em táxis.
IME: Se, durante semanas a fio, te limitares a conviver com fantasmas e a passar da secretária à cama e de volta à secretária, ficas ansioso por algum tipo de trabalho que envolva outras pessoas. Mas, à medida que fui envelhecendo, passei a sentir-me mais reconciliado com os fantasmas e um pouco menos interessado em trabalhar com outras pessoas. (continua)

Tradução de Jorge Simões

Sem comentários:

Enviar um comentário