Adam Begley: Homemade é a história de abertura da tua primeira colecção – é
aquela história com o narrador adolescente que engana a sua irmã mais nova e a
leva a praticar incesto.
Ian McEwan: Pretendia ser uma paródia
de um narrador do tipo Henry Miller, cuja gabarolice sexual se estendia por
frases que ocupavam parágrafos inteiros. Foi também uma vénia ao Portnoy de
Philip Roth.
AB: Homemade apresenta alguns tópicos de escolha – coito, incesto,
autoabuso. Virgindade espoliada. Alguma vez lamentaste ter começado com tamanho
estrondo?
IME: Na altura foi divertido.
Hoje em dia, tem os seus contras ocasionais, essa coisa do Ian McAbro. Às
vezes, acho que nunca conseguirei escapar à minha reputação do início. Mesmo
uma crítica reflexiva do Updike sobre Expiação
foi marcada, à maneira dos tablóides, pelo The New Yorker como “Lust and
Disgust” (Luxúria e Repulsa).
AB: Quando publicaste as
primeiras histórias consideraste-te ousado?
IME: Mais impaciente do que
ousado. De qualquer modo, a conversa entre os meus amigos era de tal forma
escabrosa… Todos tínhamos lido o Burroughs e o Roth e o Genet e o Joyce, tudo
se podia dizer e já tinha sido dito. Não me considerei um iconoclasta. Na
verdade, achava que escrevia uma prosa bastante educada e conservadora. É
verdade que pensava que havia um certo aborrecimento limitativo na ficção
inglesa, com as suas nuances da vida de todos os dias e todas as tonalidades
cinzentas – minúcias do vestuário, do sotaque, da classe social. Os códigos
sociais, a forma como os podemos manipular ou sermos destruídos por eles. É um
campo fértil, claro, mas eu não sabia nada sobre isso nem queria ter nada a ver
com isso.
AB: Por causa dos teus
antecedentes?
IME: Havia algo de
curiosamente dissociado nos meus antecedentes. Quando o meu pai foi promovido,
a minha família entrou numa terra de ninguém em termos de classe, já não
fazíamos parte dos soldados normais, mas também não éramos exactamente
elementos da classe dos oficiais. O meu colégio interno era uma experiência do
sector público, destinada a fazer com que rapazes oriundos do operariado de
Londres ascendessem à classe média culta. Depois, frequentei duas universidades
que estavam, pelo menos em termos ingleses, agressivamente desclassificadas.
Não tinha nenhum lugar especial ou sentimento de lealdade para com esses
estratos intrincados e a minha ficção inicial foi escrita num estado de total
indiferença a tudo isso. O meu fascínio por Kafka levou-me a pensar que a
ficção mais interessante envolvia personagens que podiam viver livres de
quaisquer circunstâncias históricas. Mas é claro que ninguém vive assim. Os
críticos ingleses foram céleres em classificar as minhas personagens como
pertencentes à classe média-baixa. É útil, como diria Larkin, podermos aprender
com isso.
AB: E as crianças? Elas podem
existir à margem da história. Há muitas em Primeiro
Amor, Últimos Ritos.
IME: É verdade, não temos que
descrever os seus trabalhos, nem os casamentos e divórcios.
AB: Tiveste outras razões para
escrever sobre crianças?
IME: Um escritor de vinte e
dois anos poderá sentir-se inibido por falta de experiência útil. A infância e
a adolescência eram algo que eu conhecia. Inúmeros escritores, no início da
carreira, passam por alguma forma de recapitulação imaginativa. As perceções da
infância são de tal modo brilhantes que as acho difíceis de esquecer. Entram em
cena se conseguirmos relaxar a nossa atenção o suficiente – não têm que ser
relembradas com esforço; estão simplesmente disponíveis.
AB: Um dos aspetos maiores de Expiação é o ponto de vista de Briony
nos capítulos iniciais, quando ainda é uma rapariguinha precoce com vontade de
escrever e um gosto perigoso pelo melodrama. Sentiste que imaginar o mundo na
perspetiva de uma criança foi como regressar a alguma coisa?
IME: Pareceu-me uma imersão
muito mais profunda. Não querer chocar os leitores ou cair no grotesco permite
uma muito maior liberdade em termos psicológicos. A criação de crianças na
ficção é sempre um problema – o ponto de vista restrito pode tornar-se um
garrote. Queria conseguir representar a mente de uma criança ao mesmo tempo que
usava todos os recursos de uma linguagem adulta complexa – tal como James faz
em What Maisie Knew. Não queria as
limitações de um vocabulário infantil. Joyce faz isso nas páginas iniciais de A Portrait of the Artist as a Young Man.
Todos tentámos imitá-lo. Deixa-nos suspensos do universo sensorial e
linguístico de um rapazinho e a magia refulge – e, depois, desaparece, tal como
a infância. Joyce avança e a linguagem evolui. A minha forma de ultrapassar
esse problema foi fazer de Briony a minha “autora” e permitir-lhe descrever a
sua infância do interior, mas na linguagem do romancista maduro.
AB: Até que ponto eras notado
antes da publicação de O Jardim de
Cimento (The Cement Garden)?
IME: Desproporcionalmente. Em
meados dos anos setenta, quando Amis e eu começámos, não havia muitos novos
romancistas. Nós atraímos todas as atenções.
AB: Nessa altura, já tinhas
desenvolvido uma rotina de escrita regular?
IME: Começava a escrever todos
os dias às nove e meia. Herdei a ética de trabalho do meu pai –
independentemente do que tivesse feito na noite anterior, levantava-se sempre
às sete. Durante os quarenta e oito anos que passou no exército não faltou um
só dia.
Nos anos setenta, costumava
trabalhar numa mesinha do meu quarto. Escrevia à mão e usava uma caneta de
tinta permanente. Depois, na máquina de escrever, fazia um esboço, fazia
escolhas e reescrevia. Certa vez, paguei a um profissional para me passar o
texto à máquina, mas senti que faltavam coisas que, se tivesse sido eu a
escrever, teria modificado. A meio dos anos oitenta, converti-me alegremente
aos computadores. O processamento em Word é mais íntimo, mais próximo do
pensamento. Se recapitular, a máquina de escrever parece uma obstrução mecânica
grosseira. Gosto da natureza provisória do material não impresso que se guarda
na memória do computador – como um pensamento não verbalizado. Gosto de poder
continuar a trabalhar frases ou passagens enquanto quiser e do modo como esta
máquina fiel se recorda de todas as minhas notazinhas e lembretes. Até ao
momento, claro, em que o trabalho vai todo ao ar.
AB: O que é, para ti, um dia
frutífero?
IME: Procuro escrever cerca de
seiscentas palavras por dia e espero escrever mil, pelo menos, se estiver mais
entusiasmado.
AB: Na introdução de A Move Abroad, escreves “Há um certo
grau de prazer na escrita criativa que não é assimilado, nem remotamente, pela teoria da literatura.” Podes
dar-me um exemplo disso?
IME: O prazer está na
surpresa. Pode ser algo tão pequeno como um casamento feliz de um nome com um
adjectivo. Ou toda uma nova cena, ou o surgir repentino de uma personagem não
planeada que simplesmente cresce a partir de uma expressão. A crítica
literária, que procura o sentido, nunca consegue abarcar o facto de que algumas
coisas se encontram numa dada página apenas porque deram prazer ao escritor. Um
escritor cuja manhã decorre sem problemas, cujas frases se estão a constituir
bem, experimenta um prazer calmo e privado. Esse prazer liberta uma riqueza de
pensamento que pode espoletar novas surpresas. Os escritores anseiam por esses
momentos, por essas sessões. Citando a segunda página de Expiação, é o ponto mais elevado no cumprimento de um projeto.
Nenhuma outra coisa – uma boa festa de lançamento, muitos leitores, críticas
positivas – se lhe aproxima em termos de satisfação.
AB: Na introdução de The Imitation Game escreves acerca da
tua inveja relativamente a quem pertence à indústria do cinema com as suas
reuniões urgentes, sempre a correr de um lado para o outro em táxis.
IME: Se, durante semanas a
fio, te limitares a conviver com fantasmas e a passar da secretária à cama e de
volta à secretária, ficas ansioso por algum tipo de trabalho que envolva outras
pessoas. Mas, à medida que fui envelhecendo, passei a sentir-me mais
reconciliado com os fantasmas e um pouco menos interessado em trabalhar com
outras pessoas. (continua)
Tradução de Jorge Simões
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