terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Encontro com Hemingway - 2


George Plimpton: Acha que um novo escritor poderia beneficiar com trabalho jornalístico? Até que ponto o ajudou o tempo que trabalhou no Kansas City Star?
Hemingway: No Star tínhamos que aprender a escrever uma simples frase declarativa. Isso é uma ajuda para quem quer que seja. O trabalho jornalístico não prejudica o escritor recém-chegado e poderá constituir um apoio se se retirar a tempo. Este é um dos mais velhos lugares-comuns e peço desculpa por isso. Mas quando faz perguntas velhas e gastas, acaba por receber respostas velhas e gastas.
George Plimpton: Certa vez, escreveu na Transatlantic Review que a única razão para se escrever texto jornalístico era ser-se bem pago. Afirmou: “E quando destruímos as nossas coisas de valor ao escrevermos sobre elas, pretendemos lucrar com isso”. Pensa na escrita como uma espécie de autodestruição?
Hemingway: Não me recordo de alguma vez ter escrito isso. Mas parece-me suficientemente tolo e violento que o tenha dito para evitar enervar-me e fazer uma declaração sensata. Com certeza que não penso na escrita como uma espécie de autodestruição, embora o jornalismo, depois de se chegar a um dado ponto, possa constituir uma autodestruição diária para o escritor sério e criativo.
George Plimpton: Acha que o estímulo intelectual da companhia de outros escritores é importante para um autor?
Hemingway: Sem dúvida.
George Plimpton: Na Paris dos anos vinte tinha alguma sensação de pertença a um grupo com outros escritores e artistas?
Hemingway: Não. Não havia essa sensação. Respeitávamo-nos mutuamente. Respeitava muitos pintores, alguns da minha idade, outros mais velhos – Gris, Picasso, Braque, Monet (que ainda estava vivo nesse tempo) – e uns poucos escritores: Joyce, Ezra, Stein…
George Plimpton: Quando escreve, sucede-lhe ser influenciado pelo que estiver a ler nessa altura?
Hemingway: Não desde o tempo em que Joyce estava a escrever Ulysses. A sua influência não foi direta. Mas naqueles dias em que as palavras nos eram barradas e tínhamos que lutar por cada palavra, a influência do seu trabalho foi o que mudou tudo e tornou possível rompermos com as restrições.
George Plimpton: Pode aprender-se com os escritores? Ainda ontem me contou que Joyce não suportava falar sobre a escrita.
Hemingway: Quando estamos com gente da nossa área, é normal falarmos sobre os livros de outros escritores. Quanto melhores forem esses escritores, menos falarão acerca dos seus próprios livros. Joyce era um excelente escritor e só explicava aquilo que fazia aos idiotas. Outros escritores que ele respeitava seriam capazes de o entender simplesmente através da leitura.
George Plimpton: Nos últimos anos, parece ter evitado a companhia de outros escritores. Porquê?
Hemingway: Isso é uma coisa mais complicada. Quanto mais escrevermos, mais isolados acabamos por ficar. A maioria dos nossos amigos, melhores e mais antigos, morrem. Outros mudam-se. Só raramente os encontramos, mas escrevemos e temos basicamente o mesmo tipo de contacto com eles como nos velhos tempos em que nos encontrávamos em cafés. Trocamos correspondência cómica, por vezes divertidamente obscena e irresponsável, e é quase tão bom como conversar. Mas estamos mais isolados porque é assim que devemos trabalhar e porque o tempo para o fazer é menor e se o desperdiçarmos sentimos que cometemos um pecado para o qual não há perdão.
George Plimpton: E a influência de alguns deles – os seus contemporâneos – no seu trabalho? Qual foi a contribuição de Gertrude Stein, se alguma? Ou de Ezra Pound? Ou de Max Perkins?
Hemingway: Lamento, mas não sou bom nestas homenagens fúnebres. Há médicos-legistas, literários e não-literários, que lidam com essas coisas. A menina Stein escreveu bastante e com considerável inexatidão sobre a sua influência no meu trabalho. Teve que o fazer depois de ter aprendido a escrever diálogos com um livro chamado O Sol Nasce Sempre (Fiesta). Eu gostava muito dela e achei esplêndido que tivesse aprendido a escrever diálogos. Para mim, aprender com os outros, vivos e mortos, não era nada de novo, e não fazia ideia de que a Gertrude se sentiria tão afetada. Ela já escrevia muito bem de outras formas. Ezra era extremamente inteligente quando conhecia uma temática. Este tipo de conversa não o aborrece? Eu acho este tipo de mexerico literário, enquanto lavamos a roupa suja de há trinta e cinco anos, repelente. Teria sido diferente se se tivesse procurado contar toda a verdade. Isso teria algum valor. Aqui, torna-se melhor e mais simples agradecer à Gertrude tudo o que aprendi com ela sobre as relações abstratas das palavras, dizer como gostava dela, reafirmar a minha lealdade a Ezra enquanto grande poeta e amigo leal e salientar que gostava tanto de Max Perkins que nunca consegui aceitar a sua morte. Ele nunca me pediu para alterar nada que tivesse escrito, a não ser retirar algumas palavras que não eram, nesse tempo, publicáveis. Deixavam-se espaços em branco e qualquer um que conhecesse as palavras saberia que estavam lá. Para mim, não era um editor. Era um amigo sábio e um companheiro maravilhoso. Gostava do modo como usava o chapéu e da estranha forma como movimentava os lábios.
George Plimpton: Quem diria serem os seus antepassados literários – aqueles com quem aprendeu mais?
Hemingway: Mark Twain, Flaubert, Stendhal, Bach, Turgenev, Tolstoy, Dostoyevsky, Chekhov, Andrew Marvell, John Donne, Maupassant, o bom velho Kipling, Thoreau, Captain Marryat, Shakespeare, Mozart, Quevedo, Dante, Virgílio, Tintoretto, Jerónimo Bosch, Brueghel, Patinir, Goya, Giotto, Cézanne, Van Gogh, Gauguin, San Juan de la Cruz, Góngora – iria demorar um dia inteiro a lembrar-me de todos. E, então, iria parecer que estava a tentar demonstrar uma erudição que não tinha em vez de me lembrar todos os que influenciaram a minha vida e o meu trabalho. Essa não é uma velha pergunta banal. É uma pergunta muito boa, mas solene e que exige um exame de consciência. Incluí pintores porque aprendo tanto com os pintores como com os escritores. Como? Demoraria mais um dia a explicar. Creio que o que aprendemos com os compositores e com o estudo da harmonia e do contraponto deve ser óbvio.
George Plimpton: Alguma vez chegou a tocar um instrumento?
Hemingway: Tocava violoncelo. A minha mãe deixou-me fora da escola durante um ano para que pudesse aprender música e contraponto. Ela achava-me capaz, mas eu não tinha qualquer talento. Tocávamos música de câmara – vinha alguém de fora para o violino; a minha irmã tocava viola de arco e a minha mãe piano. O violoncelo – tocava-o pior do que toda a gente à face do planeta. Claro que nesse ano também fazia outra coisas.
George Plimpton: Relê os autores da sua lista? Twain, por exemplo?
Hemingway: Temos que pausar durante uns dois ou três anos com o Twain. Lembramo-nos bem demais. Todos os anos leio algum Shakespeare, o Rei Lear sempre. Alegra-me.
George Plimpton: Então, a leitura é um prazer e uma ocupação constante.
Hemingway: Leio sempre – tantos livros quantos houver. Controlo-me para ter sempre que ler. (continua)

Tradução de Jorge Simões

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