Adam Begley: Há escritores que afirmam
que a sua unidade básica de pensamento é o parágrafo. E há outros que dizem que
é a frase. E há também quem trabalhe por cenas.
Ian McEwan: Claro que é difícil
separar essas coisas, mas acho que optaria pela frase. É nela que o trabalho
tem que se desenvolver a qualquer momento. Sinto que se não conseguir acertar
as frases no primeiro esboço, será difícil conseguir fazê-lo mais tarde. Não
impossível naturalmente, mas difícil. Assim, trabalho lentamente, como se o
primeiro esboço fosse o último. Leio os parágrafos que completo em voz alta –
também são uma unidade vital e gosto de sentir como é que as frases soam face a
outras frases. Quando se trata de primeiros esboços de capítulos, leio-os à
minha mulher, Annalena. Ou guardo dois ou três para lhos ler em férias. Gosto
de pensar no capítulo como uma entidade intacta e independente com a sua
própria personalidade, uma espécie de short
story – portanto, esse é um bloco de construção importante. Mas também há
momentos em que todas essas distinções caem por terra e fico apenas com a cena
e sou capaz de trabalhar dez ou doze horas num esboço até o completar.
Trata-se, regra geral, das peças de palco de que falámos anteriormente. Surgem
com relativa rapidez e precisam de muitas e demoradas revisões.
AB: Wendy Lesser, a dado
momento de uma crítica ao teu trabalho, diz que Graham Greene é “a eminência
parda que dá cor à trama de Cães Pretos
(Black Dogs).”
IME: O nome de Greene surge
sempre que um escritor procura combinar o dramatismo num local exótico com
algum grau de reflexão moral ou religiosa. Lassidão tropical, uma arma, uma
garrafa de whisky, um dilema sem solução… Saúdo Greene por ter tornado esse
território tanto seu. Leio-o com interesse e gosto do que diz sobre a própria
natureza da ficção, mas não sou um grande admirador. A prosa é um pouco plana
demais para o meu gosto.
AB: Permite-me que volte a
citar Wendy Lesser: “O grande romancista (contrariamente ao romancista esperto
que lança mão de truques) não constrói um mundo ficcional inteiramente novo de
cada vez que escreve um romance. Ao contrário dos que lhe são inferiores, não
pode escolher fazê-lo porque o mundo que visita na sua ficção possui uma
realidade que não é inteiramente construída por ele.”
IME: Parece-me estranho que um
grande romancista seja menos livre do que o seu, assim nomeado, inferior. Mas
entendo o que ela quer dizer. Prefiro deixar a grandeza fora da equação. Todos
os escritores, salvo talvez os autores de género, se encontram, em diferentes
graus, indefesos face à sua temática. O cliché habitual é que é o tema que nos
escolhe. E a personalidade do romancista deixa os seus traços inescapáveis.
Penso que será assim na escultura, na música e em todas as formas de arte. Mas
o romance constitui um caso especial. Enquanto forma, é tão rica em significado
explícito, tão intimamente preocupada com as mentes dos outros, com os
relacionamentos e com a natureza humana, além de tão extensa – dezenas de
milhares de palavras – que é natural que o escritor imprima a sua personalidade
a cada página. Não há nada a fazer. A forma é total no que abarca. Gosto de
pensar que cada livro que inicio é uma partida inteiramente nova, que Expiação e Amesterdão (Amsterdam) são mundos completamente diferentes. Mas
aprendi que, independentemente do que faça, os leitores não terão dificuldade
em estabelecer uma relação com o que tenha escrito anteriormente.
AB: Há, em Cães Pretos, uma passagem acerca de uma
fotografia de June e Bernard quendo eram um casal jovem. Ao olhar para o
instantâneo, o narrador percebe que é “a própria fotografia que cria a ilusão
da inocência. As suas ironias próprias de uma narrativa congelada transmitem
aos seus intervenientes uma inconsciência nítida do facto de que mudarão ou
morrerão.”
IME: Quando o passado é
mediado através da fotografia, adquire uma falsa inocência. A ficção ganha à
fotografia no seguinte: não condescende, não possui este tipo de ironia póstuma
– trata-se de uma expressão de Susan Sontag. Os romances ajudam-nos a resistir
à tentação de pensar no passado como um tempo a que falta toda a informação do
presente. Quando lemos Orgulho e
Preconceito ou A Vida era assim em
Middlemarch (Middlemarch), não nos sentimos tentados a acreditar que lá porque
as personagens usam chapéus estranhos, se deslocam a cavalo e não falam
explicitamente sobre sexo, são inocentes. Isso acontece porque nos é permitido
total acesso, ou acesso parcial cuidadosamente trabalhado, aos seus sentimentos
e aos seus pensamentos, os seus dilemas. Partindo do princípio de que nos
deixámos envolver pela narrativa, essas personagens surgem diante de nós
intactas, contemporâneas, não marcadas por ironias não intencionais.
AB: É preciso coragem para se
escrever sobre a ironia. Escrever, por exemplo, sobre o Mal com M maiúsculo.
IME: Especialmente quando não
acreditamos nisso. Se não houver Deus, torna-se difícil transmitir uma grande
crença intelectual no mal enquanto princípio organizador das coisas humanas,
como uma força sobrenatural vagamente abarcada. Em Cães Pretos, June acredita no mal nesses termos, ao passo que o seu
marido, Bernard, não acredita. Mas ele sabe que se trata de uma ideia poderosa.
É uma forma útil de se falar dum lado da natureza humana e metaforicamente rica
e, por isso mesmo, difícil de descartar. Dir-se-ia que é mais difícil de viver
sem o mal do que sem Deus.
AB: Em O Fardo do Amor (Enduring Love), o mal assume a forma de uma doença
mental. Que parte do romance surgiu em primeiro lugar? Foi a tentativa de assassinato no restaurante, a parte retirada do The New Yorker?
IME: Os capítulos iniciais
eram sobre um homem que procurava no seu livro de endereços, que procurava
alguém que pudesse conhecer com ligações ao crime e, de seguida, uma saída para
comprar uma arma a uns hippies envelhecidos. Nessa altura, ainda não fazia
ideia de porque é que ele queria a arma ou quem ele era. Mas sabia que queria
aquela cena. Era uma das “piscinas” de Graham Greene. A primeira trincheira que
escavei levou-me à tentativa de assassinato no restaurante. Foi assim que O Fardo do Amor começou, com cenas ao
acaso e esboços, um assobio na escuridão. Queria escrever algo que celebrasse a
racionalidade. Desde Blake, Keats e Mary Shelley que o impulso racional ficou
associado à ausência de sentimentos, à destruição fria. Na nossa literatura,
são sempre as personagens que não conseguem confiar nos seus corações que
acabam mal. No entanto, a nossa capacidade de raciocinar é um aspeto
maravilhoso da nossa natureza e, com frequência, tudo o que temos a opor ao
caos social, à injustiça e aos piores excessos das convicções religiosas.
Quando escrevia O Fardo do Amor,
estava a responder a um velho amigo que certa vez me disse que achava que
Bernard, o racionalista em Cães Pretos,
nunca é convenientemente punido. É verdade, a interpretação espiritual que June
faz da sua experiência dita a metáfora central do romance.
AB: Achas que a ciência se
torna uma personagem em O Fardo do Amor,
do mesmo modo que a história se torna uma personagem em O Inocente e em Cães Pretos?
IME: Não exatamente. As
fronteiras da ciência alargaram-se de forma muito interessante durante as
décadas mais recentes. As emoções, a consciência, a própria natureza humana,
tornaram-se tópicos legítimos da biologia. E, naturalmente, essas temáticas são
muito interessantes para o romancista. Essa invasão do nosso território pode
ser frutífera. Com esse romance, surgiu a possibilidade de integrar a ciência
melhor do que em A Criança no Tempo.
Há um momento, em O Fardo do Amor, em que Joe recorda uma
conversa que teve com Clarissa sobre o sorriso de um bebé. Joe cita E. O.
Wilson, que fala do sorriso como um “libertador social”, um elemento da
natureza humana que foi selecionado para conquistar para aquele bebé uma fatia
maior de amor parental. Tudo perfeitamente razoável do lado do Joe, até um
certo ponto. É nítido que não se trata de um comportamento aprendido – mesmo os
bebés cegos sorriem. Está nos genes, como se diz. Mas Clarissa não acha que
essa seja uma boa descrição do sorriso de um bebé. E Joe – trata-se de uma
falha no seu carácter – pressiona-a, cansa-a impensadamente, insensivelmente,
porque até ele compreende que aquilo que realmente estão a discutir é a
ausência de um bebé nas suas vidas.
Queria fazer mais do que
simplesmente correr a ciência à procura de metáforas interessantes. O
pensamento biológico tornou possível friccionar o emocional contra o científico
numa pequena cena como essa. É muito mais interessante do que tentar incluir a
mecânica quântica ou um ponto de vista cosmológico num romance. É mais maduro.
É algo à escala humana.
AB: O apêndice de O Fardo do Amor, com a sua descrição de
um caso clínico, enganou alguns críticos americanos.
IME: Diverti-me a escrever
esse apêndice. Um determinado crítico castigou o romance porque aderia
demasiado ao caso clínico no qual se baseava.
AB: Joe tem uma óbvia simpatia
para com a biologia evolucionista. Até que
ponto isso reflete as tuas próprias convicções?
IME: Só os fanáticos religiosos poderão querer negar que somos um produto da evolução biológica. A questão reside em saber quanto do nosso passado evolutivo nos explica. A minha opinião é de que se trata de mais do que costumávamos gostar de crer e um pouco menos do que os expoentes da psicologia evolutiva desejariam. Conseguimos descrever uma dada natureza humana, um conjunto de predisposições existentes em diferentes culturas e não conseguimos adivinhar quais as pressões adaptativas que lhes deram origem. Mas não sei até que ponto ou com que grau de profundidade isso nos pode levar às peculiaridades do comportamento individual. A cultura, o ambiente social, que em si ajudou a moldar os nossos genes, emite um sinal espantoso e fascinante. É difícil separar as coisas. Muito claramente, há um sentido de que as nossas vidas moldam aquilo que somos. Mas não nascemos em branco e não podemos assumir qualquer forma. As nossas diferenças não são infinitas e a forma como as pessoas se aproximam é, pelo menos, tão interessante como as divergências. Trata-se de uma área sobre a qual escritores e biólogos poderiam ter muito a debater e uma das razões porque escrevi O Fardo do Amor. (continua)
Tradução de Jorge Simões
IME: Só os fanáticos religiosos poderão querer negar que somos um produto da evolução biológica. A questão reside em saber quanto do nosso passado evolutivo nos explica. A minha opinião é de que se trata de mais do que costumávamos gostar de crer e um pouco menos do que os expoentes da psicologia evolutiva desejariam. Conseguimos descrever uma dada natureza humana, um conjunto de predisposições existentes em diferentes culturas e não conseguimos adivinhar quais as pressões adaptativas que lhes deram origem. Mas não sei até que ponto ou com que grau de profundidade isso nos pode levar às peculiaridades do comportamento individual. A cultura, o ambiente social, que em si ajudou a moldar os nossos genes, emite um sinal espantoso e fascinante. É difícil separar as coisas. Muito claramente, há um sentido de que as nossas vidas moldam aquilo que somos. Mas não nascemos em branco e não podemos assumir qualquer forma. As nossas diferenças não são infinitas e a forma como as pessoas se aproximam é, pelo menos, tão interessante como as divergências. Trata-se de uma área sobre a qual escritores e biólogos poderiam ter muito a debater e uma das razões porque escrevi O Fardo do Amor. (continua)
Tradução de Jorge Simões
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