McEwan em 1979 |
Apresentamos a partir de hoje, de forma faseada, uma longa e elucidativa entrevista com Ian McEwan, um dos nomes maiores da literatura contemporânea. Adam Begley realizou-a para The Paris Review em sessões que decorreram de 1996 a 2001.
Adam Begley: No teu terceiro romance, A Criança no Tempo (The Child in Time),
encontramos os pais do narrador e suspeito que se assemelhem aos teus pais. Até
que ponto é este retrato fiel à vida real?
Ian McEwan: Bastante fiel, ainda que
um pouco idealizado. Os meus pais tinham um relacionamento difícil sem jamais o
terem reconhecido e era difícil narrá-lo enquanto estavam ambos vivos. Eu nasci
em 1948, nos subúrbios de Aldershot, uma cidade Vitoriana bastante feia. Nesse
tempo, o meu pai estava no exército. Era oriundo de Glasgow e tinha mentido
relativamente à idade, em 1933, para poder entrar no exército e escapar ao
desemprego que assolava as margens do Clyde.
Ele aparece pela primeira vez
em Expiação (Atonement). Quando, em
1940, trabalhava como condutor de motos, foi ferido nas pernas. Fez equipa com
outro soldado que tinha sido ferido nos braços e, entre os dois, conseguiram
controlar a mota. Passam por Robbie quando vão na estrada para Dunquerque.
David McEwan era muito
atraente, tinha uma postura ereta, com algo de perigoso no aspeto. Bebia
bastante, era assustador. Era grande defensor do tipo de vida militar e,
simultaneamente, adorava-me. Mas as minhas mais antigas recordações são de
idílios com a minha mãe, durante a semana, interrompidos, ao fim de semana,
pela chegada ruidosa do meu pai, que enchia o nosso bungalow prefabricado com o
fumo dos seus cigarros. Não tinha grande jeito para comunicar com crianças. Gostava
do pub e da messe dos sargentos. Tanto eu como a minha mãe o temíamos. Ela
tinha crescido numa aldeia perto de Aldershot e tinha deixado a escola aos
catorze anos para trabalhar como criada de quarto. Mais tarde, viria a
trabalhar numa grande loja. Mas, durante a maior parte da sua vida, foi uma
dona de casa que, como todas as donas de casa da sua geração, tinha um enorme
orgulho na ordem e brilho do lar.
AB: Em A Criança no Tempo, há uma cena em que a mãe está a chorar. Não
sabemos exactamente porquê – ficamos apenas com a vaga noção de que algo está
errado.
IME: O hábito de beber do meu
pai era, por vezes, um problema. E ficava muito por dizer. Em termos
emocionais, não era particularmente vivo ou articulado. Mas tratava-me com
muito afeto. Quando eu passava nos exames, ele ficava muito orgulhoso – fui o
primeiro, na família, a frequentar o ensino superior.
AB: Como é que eras enquanto
criança?
IME: Reservado, pálido,
sonhador, muito ligado à minha mãe, tímido, aluno mediano. Há algo de mim no
Peter de O Sonhador (The Daydreamer).
Era reservado e nunca falava em grupos. Preferia as amizades próximas.
AB: Gostaste de ler desde cedo?
IME: Os meus pais queriam que
eu tivesse a educação que nunca tinham tido. Não podiam guiar-me para leituras
específicas, mas encorajaram-me a ler, o que fiz, de tudo e compulsivamente. Na
minha adolescência, já dispunha de melhores indicações. Aos treze anos, lia Iris
Murdoch, John Masters, Nicholas Monsarrat, John Steinbeck. The Go-Between, a obra de L. P. Hartley, impressionou-me muito.
Lia, também, livros de divulgação científica. Asimov sobre o cérebro, livros da
Penguin sobre o sangue, etc. Pensei seriamente seguir Ciências. Aos dezasseis,
tive um professor que foi uma grande influência para mim, Neil Clayton, que me
encorajou a alargar os meus horizontes de leitura e que tinha o dom de fazer
com que parecesse que autores como Herbert, Swift e Coleridge estavam vivos e
presentes. Eu pensava em The Wasteland,
the T. S. Eliot, como um poema ritmado da idade do jazz, extremamente
acessível. Comecei a pensar na literatura como uma espécie de sacerdócio que me
aguardava.
Entrei numa das novas
universidades, a universidade do Sussex. Havia lá uma noção vívida e radical do
que uma pessoa culta deveria ser. Éramos encorajados a ler diferentes temáticas
e a pensá-las no contexto histórico. Kafka e Freud, no meu último ano da
universidade, impressionaram-me bastante.
AB: O que estudavas na universidade? Que
profissão pensavas vir a ter?
IME: Abandonei a ideia do
sacerdócio depois do meu primeiro ano. Pensei simplesmente que me estava a
formar. Mas comecei a sentir o entusiasmo da escrita. Tal como é normal, o meu
desejo de escrever antecedeu qualquer clara noção do que isso implicava. Depois
de me ter formado, soube de um novo curso na Universidade de East Anglia, que
me permitiria escrever ficção em simultâneo com o trabalho académico.
Telefonei-lhes e, surpreendentemente, fui imediatamente encaminhado para o
Malcolm Bradbury, que me disse: “Oh, a parte da ficção foi descontinuada porque
não houve candidatos.” Era o primeiro ano do programa. E perguntei: “Bom, e se
eu me candidatar?” Ao que ele respondeu: “Venha cá falar connosco e ver-se-á”.
Foi um maravilhoso golpe de
sorte. Esse ano – 1970 – mudou-me a vida. Escrevia uma short story a cada três ou quatro semanas e encontrava-me com o
Malcolm, durante uma meia hora, num pub em Norwich. Mais tarde, conheci o Angus
Wilson. Em termos gerais, ambos me encorajavam mas não interferiam nem davam
conselhos específicos. Era ideal. Entretanto, esperavam que escrevesse
trabalhos sobre o Burroughs, Mailer, Capote, Updike, Roth, Bellow – estes
autores foram uma revelação. O romance americano parecia tão vibrante em
comparação com o seu congénere britânico da época! Pleno de ambição e energia e
uma certa loucura mal oculta… Procurei responder a esta qualidade de uma certa
loucura à minha modesta maneira e escrever contra o que me parecia ser a
cinzentidão do estilo inglês e das suas temáticas. Procurei situações extremas,
narradores perturbados, obscenidade e choque – e tentei enquadrar esses
elementos numa prosa cuidada ou disciplinada. Escrevi a maior parte de Primeiro Amor, Últimos Ritos (First
Love, Last Rites) durante esse ano.
AB: Como é que essas short stories chegaram do pub à editora?
IME: A Transatlantic Review
publicou a minha história em 1971. Mas o editor de longe mais importante no
início da minha carreira, e o primeiro a levar-me a sério, foi Ted Solotaroff
na New American Review. Começou a publicar as minhas histórias em 1972 e foi um
editor muito prestativo e muito percetivo. A Review era uma publicação
trimestral em formato de livro de bolso e cada novo número incluía autênticas
pérolas de escritores dos quais nunca ouvira falar. Penso nele como uma
figura-chave das Letras americanas. Devo-lhe muito. A excitação que um escritor
experimenta no início da sua vida literária nunca pode ser efetivamente
repetida. Certa vez, Solotaroff incluiu o meu nome na capa, junto com Günter
Grass, Susan Sontag e Philip Roth. Eu tinha vinte e três anos e senti-me um impostor, mas igualmente muito
empolgado. Por volta dessa altura, parti na rota dos hippies com dois amigos
americanos. Comprámos uma carrinha Volkswagen em Amsterdão e seguimos para
Cabul e para o Paquistão. Enquanto viajávamos, era frequente sonhar que estava
de novo sob um céu cinzento que não permitia distrações e que escrevia ficção.
Depois de seis meses, estava desesperado por voltar ao trabalho. Pouco depois
do meu regresso, o Tom Maschler, da Cape, propôs-me publicar uma colecção das
minhas histórias. Durante o inverno de 1974, mudei-me de Londres para Norwich.
Foi mais ou menos por volta do tempo em que a New Review de Ian Hamilton
avançava. Ele faleceu em dezembro de 2001 e todos os que o conhecíamos ainda
sentimos a sua perda. A revista também era um ponto de encontro – o escritório
oficioso ficava no pub Pillars of Hercules, na Greek Street. O Ian era o
presidente diante de um cenário vívido, caótico e movido a álcool. Conheci
inúmeros escritores que se tornaram meus amigos para a vida, cujo trabalho
acompanhei de perto desde então – James Fenton, Craig Raine, Christopher Reed.
Conheci o Martin Amis nessa época, assim como o Julian Barnes, que escrevia uma
coluna para a New Review com o pseudónimo Edward Pygge. Todos estávamos à beira
de publicar os nossos primeiros livros. Foi, para mim – espécie de rato do
campo das letras -, uma excelente entrada numa cena literária metropolitana que
parecia extremamente aberta aos recém-chegados. (continua)
Tradução de Jorge Simões
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