domingo, 31 de maio de 2015

Escritor do mês: Ernest Hemingway



Nascido em Oak Park, no estado norte americano do Illinois, em 1899, Hemingway foi jornalista e escritor e uma das principais influências na modernização da escrita do século XX.
Vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1954, esteve presente na Grande Guerra, onde foi gravemente ferido, foi jornalista em Espanha durante a Guerra Civil, tendo-se tornado então um aficionado da tourada, viveu em Paris, Londres e em Cuba, onde defendeu a Revolução e foi amigo de Fidel Castro e Che Guevara, casou-se quatro vezes e legou-nos uma coleção de sete romances, seis coletâneas de contos e dois trabalhos não ficcionais, a que se somaram, a título póstumo, três novos romances, quatro coletâneas de contos e três trabalhos não ficcionais. As suas obras foram, de igual modo, frequentemente adaptadas para o cinem e para a televisão.
Vítima de vários acidentes que quase o deixaram às portas da morte e o marcaram física e mentalmente, manteve, nos últimos anos da sua vida, residência em Key West, na Florida, e em Cuba. Em 1959, adquiriu uma casa em Ketchum, no Idaho, onde acabou por cometer suicídio e falecer a 2 de julho de 1961. Para o suicídio terão contribuído, para além das sequelas físicas de uma vida de aventura, o facto de ter adquirido um forte hábito de consumo de álcool e a possibilidade de, tal como o seu pai, que também se suicidara, padecer de hemocromatose, uma doença que causa a incapacidade do organismo de metabolizar o ferro e que conduz à deterioração física e mental.
Eis um pequeno exemplo da sua literatura, com o conto Um Gato à Chuva:


Apenas dois americanos estavam hospedados no hotel. Não conheciam nenhuma das pessoas com quem se tinham cruzado pelas escadas, no movimento de “entra e sai” do quarto. Estavam hospedados no segundo andar, num apartamento que ficava de frente para o mar e também de frente para a praça e para o monumento da guerra. Havia enormes palmeiras e bancos verdes na praça. Quando o tempo estava bom, havia lá sempre um pintor com o seu cavalete. Os artistas gostavam das formas das palmeiras e das cores brilhantes dos hotéis, de frente para os jardins e para o mar. Italianos vinham de longe para ver o monumento da guerra. Era feito de bronze e reluzia na chuva. Estava a chover. Gotas de chuva caiam das palmeiras. A água formava poças nos caminhos de cascalho. O mar rebentava numa extensa linha, na chuva, e deslizava rumo à praia para retornar e rebentar de novo numa longa linha, repetindo o mesmo movimento. Os carros já tinham deixado a praça, passando pelo monumento da guerra. Do outro lado, um empregado de mesa olhava a praça vazia, da porta de um snack-bar. A mulher americana, de pé, próxima à janela, observava o movimento. Fora do hotel, bem debaixo da janela deles, uma gata estava encolhida debaixo de uma das mesas verdes encharcadas. A gata enroscava-se para não se molhar. – Eu vou descer e agarrar naquela gatinha – disse a mulher americana. – Deixa estar que eu faço disso – retorquiu o marido da cama. – Não, não há problema, eu vou. Pobre gatinha, a tentar proteger-se da chuva debaixo da mesa. O marido continuou a sua leitura, apoiado em dois travesseiros aos pés da cama. – Não te molhes – disse ele. A mulher desceu as escadas e o dono do hotel levantou-se para a cumprimentar quando ela passou pelo seu escritório. Ele era velho e muito alto. – Il piove – disse a mulher. Ela gostava do dono do hotel. – Si, si, Signora, brutto tempo. O tempo está muito ruim. Ele ficou de pé atrás de sua mesa, no fundo da sala escura. A mulher gostava dele. Apreciava o modo extremamente sério com que acolhia qualquer reclamação. Admirava a sua dignidade. Gostava da forma como ele a tratava. Gostava de como ele se sentia honrado em cuidar do hotel. Gostava do seu rosto velho e marcado pelo tempo e das suas mãos grandes. Enquanto pensava nele, ela abriu a porta e olhou para o exterior. A chuva estava mais forte. Um homem com uma capa atravessava a praça em direção ao café. A gata deveria estar por perto, à direita. Talvez pudesse ir por debaixo dos telhados. Ainda estava na porta quando um guarda-chuva se abriu atrás dela. Era a empregada do seu quarto. – A senhora não deve molhar-se – sorriu, falando italiano. Obviamente, tinha sido mandada pelo dono do hotel. A americana andou pelo caminho de cascalho, com a empregada a segurar o guarda-chuva para que ela não se molhasse, até que chegou debaixo da janela do seu quarto. A mesa estava lá, com um verde brilhante após ter sido lavada pela chuva, mas o gato tinha desaparecido. De repente, ela sentiu-se desapontada. A empregada olhou para a hóspede. – Ha perduto qualque cosa, Signora? – O gato – disse a mulher americana. – Um gato? – Si, il gatto. – Um gato? – a empregada riu. – Um gato na chuva? – Sim – respondeu. – Debaixo da mesa. Eu queria tanto que ela fosse minha. Queria ter uma gatinha. Quando ela falou em inglês, o rosto da empregada contraiu-se. – Venha, signora – disse. – Devemos voltar para dentro. A senhora vai acabar por se molhar. – Está bem – disse a jovem americana. Voltaram pelo caminho de cascalho e entraram pela porta. A empregada ainda ficou do lado de fora para fechar o guarda-chuva. Quando a jovem americana passou pelo escritório, o padrone fez um gesto de cortesia, da sua mesa. A jovem sentiu como se houvesse algo muito pequeno e apertado dentro de si. O padrone fez com que ela se sentisse insignificante e ao mesmo tempo muito importante. Subiu as escadas. Abriu a porta do quarto. George estava a ler, na cama. – Conseguiste agarrar o gato? – perguntou, baixando o livro. – Não, desapareceu. – Para onde será que ele foi? – perguntou ele, tirando os olhos do livro. Ela sentou-se na cama. – Eu queria tanto aquela gatinha. Nem sei porque é que a queria tanto. Queria aquela pobre gatinha. Deve ser horrível ser uma gatinha indefesa nessa chuva. George tinha retomado a leitura. Ela caminhou e sentou-se na frente do espelho da cómoda, olhando para si mesma, com um espelho na mão. Estudou o seu perfil, primeiro de um lado, depois do outro. Então estudou a parte de trás de sua cabeça e a sua nuca. – Não achas boa ideia eu deixar o meu cabelo crescer? – perguntou, olhando de novo para o seu perfil. George olhou e viu sua nuca, raspada como a de um garoto. – Gosto dele como está. – Estou tão farta deste cabelo – disse ela. Estou tão farta de parecer um rapaz. George mudou de posição na cama. Ainda não tinha desviado os olhos dela desde que começara a falar. – Estás muito bonita – disse ele. Ela colocou o espelho na cómoda, foi para a janela e olhou para o lado de fora. Estava a escurecer – Quero puxar o meu cabelo para trás, bem preso e liso, e fazer um puxo bem grande para que eu o sinta. E quero uma gatinha para se sentar no meu colo e fazer ronrom quando eu lhe fizer festas. – Pois – disse George da cama. – E quero comer numa mesa com os meus próprios talheres e quero velas. E quero que seja primavera, quero pentear o meu cabelo na frente de um espelho e quero uma gatinha nova e roupas novas. – Ora, está calada e lê alguma coisa – disse George. Estava novamente a ler. A sua esposa olhava pela janela. Agora o céu estava bastante escuro e a chuva continuava a cair nas palmeiras. – De qualquer modo, eu quero um gato – disse ela. – Eu quero um gato. Quero um gato agora. Se não posso ter cabelos compridos nem uma distração, posso ter um gato. George não estava a ouvir. Estava a ler o seu livro. A sua mulher olhou pela janela e viu que a luz da praça estava acesa. Alguém bateu na porta. – Avanti – disse George e levantou os olhos do livro. A empregada estava de pé à porta. Segurava num grande gato malhado, apertado fortemente contra o seu corpo. – Com licença – disse – O padrone mandou trazer o gato para a Signora.

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