William Somerset Maugham foi um dos maiores nomes da escrita britânica - dramaturgo, romancista e escritor de short stories - , nascido em janeiro de 1874 na embaixada do Reino Unido, em Paris, e falecido em dezembro de 1965.
Com apenas dez anos de idade ficou órfão de pai e mãe, tendo sido criado por um tio emocionalmente distante. Ainda que pressionado para se tornar advogado, como era tradição na família, Maugham optou pela Medicina e trabalhou com a Cruz Vermelha durante a Grande Guerra. Trabalhou igualmente para os Serviços Secretos e viajou intensivamente, sendo que a sua experiência de viagens se viria a refletir na sua escrita. O seu primeiro romance, Liza of Lambeth (1897), vendeu-se com tal rapidez que Maugham acabou por desistir da medicina poara se dedicar exclusivamente à escrita.
O autor legou-nos uma imensidão de obras, de entre as quais destacamos Servidão Humana (1915), O Véu Pintado (1925) e O Fio da Navalha (1944). Trinta e seis das suas obras foram adaptadas ao cinema. Em 1947, criou o Prémio Somerset Maugham, destinado a premiar os melhores escritores britãnicos até aos 35 anos de idade. Doou em testamento as royalties dos seus trabalhos ao Royal Literary Fund. Dele disse George Orwell: "Foi o escritor moderno que mais me influenciou e que admiro enormemente pela sua capacidade de narrar uma história diretamente e sem floreados".
De Maugham, divulgamos hoje o conto/short story O Sacristão:
O Sacristão
Naquela tarde, houvera batizado na igreja de
St. Peter, em Neville Square, e Albert Edward Foreman ainda estava com a sua
toga de sacristão. Guardava a toga nova, com as suas dobras tão perfeitas e
cheias como se não fossem de alpaca, senão de bronze eterno, para os funerais e
os casamentos (St. Peter, em Neville Square, era uma igreja muito procurada
para tais cerimónias pelas famílias da classe alta), e agora estava com a toga
classificada em segundo lugar. Albert Edward Foreman usava a toga com calma
satisfação, pois era o digno símbolo da sua função, e sem ela (quando a despia
para ir para casa) tinha a perturbadora sensação de estar vestido um pouco
insuficientemente. Elas mereciam-lhe muitos cuidados; passava-as a ferro
pessoalmente. Durante os dezasseis anos em que fora sacristão desta igreja,
tivera uma sucessão de togas, mas não pudera deitá-las fora quando envelheciam;
e a série completa, primorosamente embrulhada em papel pardo, jazia no fundo
da gaveta do guarda-roupa, no seu quarto.
O sacristão movia-se discretamente; repôs a
tampa de madeira esmaltada sobre a pia batismal, que era de mármore, recolocou
no seu lugar uma cadeira que fora trazida para uma senhora idosa e enferma, e
ficou à espera de que o pároco terminasse os seus arranjos pessoais na
sacristia, a fim de pôr tudo em ordem e ir para casa. Agora, viu-o entrar no
coro, fazer uma genuflexão diante do altar-mor, e tomar a direção da nave;
tirara a sobrepeliz e a estola, mas ainda estava de batina.
- Por que andará ele a trocar as pernas ? -
disse, para si, o sacristão. - Então não sabe que tenho de ir tomar chá ?
O pároco fora provido recentemente, um homem
enérgico, de cara vermelha, com mais de quarenta anos; e Albert Edward
continuava a lamentar a saída do antecessor, um padre da velha escola, que
pregava descansadamente com voz argentina e jantava quase sempre com os
paroquianos mais aristocráticos. Gostava que as coisas da igreja estivessem nos
seus lugares, mas nunca se arreliava por causa de bagatelas; não era como este,
que em tudo queria pôr o dedo. Mas Albert Edward era tolerante. St. Peter
ficava num ótimo bairro e os paroquianos eram gente fina. O novo pároco viera
do East End e não se podia esperar que se adaptasse imediatamente às maneiras
discretas de uma congregação de fiéis aristocráticos.
- É um transtorno - dizia Albert Edward. -
Mas, com o tempo, ele aprenderá.
Quando o pároco avançara pela nave o
suficiente para poder dirigir-se ao sacristão sem levantar a voz mais do que
era conveniente num lugar de adoração, parou.
- Foreman, venha um momento até a sacristia.
Tenho uma coisa a dizer-lhe.
- Com certeza, reverendo.
O pároco esperou que ele chegasse e seguiram
juntos em direção ao altar.
- Foi um batizado muito bonito. Engraçado
como o bebé parou de chorar quando o senhor padre segurou nele.
- Tenho notado que quase sempre é assim -
disse o pároco, com um pequeno sorriso.
- Mas, no fim de contas, tenho grande prática
de pegar em crianças.
Para ele, era uma fonte de orgulho, sempre
reprimido, o fato de quase sempre poder sossegar as crianças, que choravam,
pela maneira de as segurar; e não deixava de tomar conhecimento da divertida
admiração com que as mães e amas o viam aninhar a criança na dobra da manga da
sobrepeliz. O zelador compreendia que lhe agradava ser cumprimentado por esta
habilidade.
O pároco precedeu Albert Edward na sacristia.
O zelador ficou um pouco surpreendido ao encontrar-se com os dois guardiães da
junta paroquial. Não os
vira chegar. Ambos lhe acenaram amistosamente
com a cabeça.
- Boa-tarde, senhor lorde. Boa-tarde, senhor
general - disse a um e a outro.
Eram homens idosos, ambos, e ocupavam os seus
postos há quase tanto tempo quanto Albert Edward era sacristão. Agora, estavam
sentados à bela mesa de jantar que o antigo pároco trouxera da Itália, muitos
anos atrás; e o pároco sentou-se na cadeira vaga, entre os dois guardiães.
Albert Edward estava de frente para eles, com a mesa de permeio; e, sentindo um
vago mal-estar, especulava sobre o possível tema da conversa. Lembrava-se ainda
da ocasião em que o organista se metera numa complicação e dos aborrecimentos
por que tinham passado para abafar a coisa. Numa igreja como a de St. Peter, em
Neville Square, não se tolerava um escândalo. No rosto vermelho do pároco,
havia uma expressão de resoluta benignidade; mas os outros tinham as
fisionomias levemente perturbadas.
"O padre andou a aborrecer os
dois", disse consigo o sacristão. "Pediu-lhes para fazerem alguma
coisa e eles não gostaram. É isso mesmo, sou capaz de garantir."
Mas os pensamentos não apareciam nas feições
bem marcadas e distintas de Albert Edward. Mantinha-se em atitude respeitosa,
mas não servil. Fora doméstico, antes de obter este cargo, mas só trabalhara em
casas de tratamento, e a sua maneira de se conduzir era irrepreensível.
Começando como menino de recados na residência de um comerciante forte, subira
gradualmente do posto de quarto criado a primeiro; fora durante um ano mordomo
da viúva de um par; e, até que se abrisse a vaga na igreja de St. Peter,
mordomo com dois auxiliares na casa de um embaixador reformado. Era alto,
enxuto, grave, e digno. Se não parecia um duque, assemelhava-se pelo menos a um
ator da velha escola, especializado em papéis de duque. Tinha tato, firmeza e
segurança. O seu caráter era inatacável. O pároco começou abruptamente.
- Foreman, temos uma coisa um pouco
desagradável para lhe comunicar. Você já trabalha aqui há longos anos e penso
que o senhor lorde e o senhor general concordam comigo que cumpriu os deveres
do seu cargo a contento.
Os dois guardiães fizeram um gesto
de aquiescência.
- Mas uma circunstância extraordinária chegou
ao meu conhecimento, um dia destes, e achei ser meu dever participá-la aos
guardiães. Descobri, com assombro, que você não sabe ler nem escrever.
O rosto do sacristão não exibiu nenhum sinal
de embaraço.
- O último pároco sabia disso, reverendo -
respondeu. - Disse-me que não fazia mal. Dizia sempre que na sua opinião havia
demasiada educação no mundo.
- Essa é a coisa mais espantosa que já ouvi
até hoje - exclamou o general. - Quer dizer que foi zelador desta igreja
durante dezasseis anos e nunca aprendeu a ler e escrever ?
- Eu comecei a trabalhar com doze anos,
senhor general. O cozinheiro da primeira casa onde me empreguei tentou ensinar-me,
uma vez, mas parece que eu não tinha muito jeito, e depois, com uma coisa e
outra, nunca me sobrava tempo. E o certo é que nunca senti falta disso. Acho
que uma muitos rapazes desperdiçam muito tempo a ler, quando bem podiam estar a
fazer alguma coisa de útil.
- Mas não sente vontade de ler as notícias ?
- disse o primeiro guardião. - Nunca sente vontade de escrever uma carta ?
- Não, senhor lorde, passo muito bem sem
isso. E, nos últimos anos, os jornais vêm com todas essas figuras, e eu entendo
regularmente o que está a acontecer. A minha senhora é muito instruída e,
quando quero escrever uma carta, ela escreve-a por mim.
Os dois guardiães fitaram os olhos aflitos no
pároco e seguidamente na mesa.
- Bem, Foreman, eu discuti o assunto com
estes dois senhores e eles concordam inteiramente comigo que a situação é
insustentável. Numa igreja como a de St. Peter, em Neville Square, não pedemos
ter um sacristão que não saiba ler e escrever.
O rosto fino e pálido de Albert Ecíward
enrubesceu, e ele mexeu com os pés, contrafeito, mas não respondeu.
- Compreenda-me, Foreman, eu não tenho
nenhuma queixa de si. Faz o seu trabalho de modo inteiramente satisfatório;
tenho no mais alto conceito tanto o seu caráter como a sua capacidade; mas não
temos o direito de nos arriscarmos a algum acidente que poderia acontecer em
consequência da sua lamentável ignorância. Trata-se de uma questão de
prudência, assim como de princípio.
- Mas você não podia aprender, Foreman ? -
perguntou o general.
- Não, senhor; acho que agora, não. O senhor
vê, eu já não sou novo como era e, se não podia meter as letras na cabeça
quando era miúdo, acho que agora não há nenhuma possibilidade.
- Não queremos ser duros com você, Foreman -
disse o pároco. - Mas os guardiães e eu estamos inteiramente decididos.
Dar-lhe-emos três meses de prazo e, se no fim desse período você não souber ler
e escrever, acho que terá de deixar o lugar.
Albert Edward nunca simpatizara com o novo
padre. Desde o começo, dissera que tinham cometido um erro ao entregar-lhe a
igreja de St. Peter. Não era o tipo de homem para urna congregação de fiéis de
classe, como aquela. Agora, empinou um pouco o busto. Conhecia o seu valor e
não ia permitir que o afrontassem.
- Desculpe, reverendo, mas acho que assim não
me serve. Sou um animal muito velho para aprender truques novos. Vivo já há
tantos anos sem aprender a ler e a escrever, e, sem me querer autoelogiar (o
elogio não é recomendação na boca do elogiado), posso dizer que fiz o meu dever
nesse estado da vida em que a Providência misericordiosa achou por bem colocar-me,
e, mesmo que pudesse aprender agora, acho que não me decidiria.
- Nesse caso, Foreman, creio que tem de deixar
o lugar.
- Sim, reverendo, eu compreendo. Terei todo o
gosto em apresentar a minha demissão logo que o senhor padre encontre alguém
que me substitua.
Mas quando Albert Edward, com a sua
delicadeza habitual, fechara a porta da igreja depois de o pároco e os dois
guardiães terem passado, não pode conservar a atitude de calma dignidade com
que suportara o golpe; e os seus lábios tremeram. Voltou lentamente para a
sacristia e pendurou no respetivo cabide a toga de sacristão. Suspirou, ao
pensar nos grandes funerais e nos casamentos elegantes a que assistira. Pôs
tudo em ordem, enfiou o casaco, e, de chapéu na mão, percorreu a nave em
direção à frente. Saiu e fechou a porta da igreja à chave. Cruzou devagar a
praça, mas, absorto nos seus pensamentos tristes, não tomou a rua que ia ter à
sua casa, onde o esperava uma boa taça de chá forte; seguiu um rumo errado.
Caminhava lentamente. Sentia uma opressão no peito. Não sabia o que fazer
consigo mesmo. Não lhe agradava a ideia de voltar para o serviço doméstico;
depois de ter sido dono do seu nariz durante tantos anos (pois o pároco e os
guardiães podiam dizer o que quisessem, mas era ele quem administrava a igreja
de St. Peter), dificilmente se aviltaria aceitando um emprego naquele ramo.
Poupara uma boa soma, mas não era suficiente para viver sem fazer alguma coisa,
e a vida parecia estar mais cara de ano para ano. Jamais julgara ter algum dia
de se preocupar com tais problemas. Os sacristãos da igreja de St. Peter, como
os papas, eram vitalícios. Com frequência, pensava na grata referência que o
pároco haveria de fazer, durante o sermão das vésperas do primeiro domingo
depois de sua morte, aos longos e fiéis serviços e ao caráter exemplar do nosso
finado sacristão, Albert Edward Foreman. Soltou um suspiro fundo. Albert Edward
era abstémio de álcool e tabaco, porém com certa largueza; isto é, gostava de
um copo de cerveja ao jantar e, quando estava cansado, fumava com prazer um
cigarro. Ocorreu-lhe agora que um cigarro havia de o confortar e, como não os trazia
consigo, olhou em torno, à procura de uma casa onde pudesse comprar um maço de
Gold Flakes. Não encontrou imediatamente nenhuma tabacaria, e continuou a
cxaminhar. Era uma rua longa, com toda a espécie de comércio, mas não havia uma
só casa onde se pudessem comprar cigarros.
- É esquisito - disse Albert Edward.
Para se certificar, tornou a percorrer a rua,
em sentido inverso. Não; não havia dúvidas quanto a isso. Parou e olhou,
pensativo, para um lado e outro.
- Eu não posso ser a única pessoa que passa
por esta rua e sente vontade de fumar - disse. - Acho que alguém poderia obter sucesso, com uma pequena tabacaria
por aqui. Cigarros e doces, naturalmente.
De repente, alçou a cabeça.
- Está aí uma ideia - disse. - É esquisito
como nos lembramos das coisas quando menos se espera. Deu meia volta, foi para
casa e tomou o chá.
- Estás tão silencioso esta tarde, Albert -
observou a mulher.
- Estou a pensar - disse ele.
Estudou a questão, de todos os ângulos; no
dia seguinte, percorreu a rua e, por sorte, descobriu um local que estava para
alugar e serviria exatamente para o seu intento. Vinte e quatro horas depois,
alugara-o e, quando, daí a um mês, deixou para sempre a igreja de St. Peter, em
Neville Square, Albert Edward Foreman estabeleceu-se com tabacaria e venda de
jornais. A sua mulher opinou que era uma imensa queda, depois de ter ele sido sacristão
de St. Peter, mas Albert Edward respondeu que era preciso acompanhar as
mudanças do tempo, a igreja não era o que fora, e dali em diante iria dar a
César o que era de César. Saiu-se bem. Saiu-se tão bem que, decorrido um ano,
aproximadamente, ocorreu-lhe que poderia abrir uma segunda tabacaria e
entregá-la a alguém para exploração. Procurou outra rua longa que não tivesse nenhuma
tabacaria e, quando a encontrou, corn uma frente para alugar, montou e abriu a
nova casa. Também esta foi um sucesso. Refletiu em seguida que, se podia ter
duas, podia ter meia dúzia, e começou a andar através de Londres; e, sempre que
descobria uma rua longa que, não tendo tabacaria, tivesse um local apropriado
para alugar, montava e abria um negócio do seu ramo. Ao fim de dez anos,
fundara nada menos de dez tabacarias e ganhava muito dinheiro. Percorria-as
pessoalmente todas as segundas-feiras, levantava os lucros da semana e
depositava-os no banco.
Uma manhã, quando estava a recolher um maço
de notas e urna pesada bolsa de moedas de prata, o caixa do banco disse-lhe que
o gerente desejava falar-lhe.
Foi levado a um gabinete e recebido pelo
gerente.
- Mr. Foreman, eu queria conversar consigo
sobre o dinheiro que tem em depósito aqui. Sabe exatamente a quanto monta ?
- Exatamente, não, senhor; mas lenho uma
ideia bem aproximada.
- à parte a entrada desta manhã, o seu
depósito vai um pouco além de trinta mil libras. É uma soma muito grande para
ficar em depósito, e ocorreu-me que lhe conviria investi-la.
- Não desejo arriscar-me, senhor. Sei que no
banco está em segurança.
- Mas não precisa de ter qualquer
preocupação. Dar-lhe-emos uma lista de títulos garantidos. Eles proporcionar-lhe-ão
uma taxa de juro melhor do que é possível aqui.
Traços de preocupação instalaram-se nas
feições bem marcadas de Mr.Forernan.
- -Nunca entendi nada de ações e dividendos,
e teria de deixar tudo isso nas mãos do banco--disse ele. O gerente sorriu.
- Engarregar-nos-emos de tudo. O senhor teria
apenas de assinar os papéis, na próxima vez que nos visitasse.
- Eu poderia fazer isso-disse Albert, com
incerteza.---Mas como ia saber o que é que estava a assinar?
- Suponho que sabe ler - disse o gerente, um
pouco rispidamente.
Mr. Forernan sorriu-lhe, apaziguador,
-Pois é isso, senhor. Não sei. Naturalmente
parece engraçado, mas é o que é, não sei ler, e não sei escrever a não ser o
meu nome, e só aprendi isso quando me estabeleci como comerciante.
O gerente ficou tão surpreendido que se
empertigou na cadeira.
- Mas é a coisa mais extraordinária que já
vi.
- O senhor vê, eu nunca tive a oportunidade
de aprender, a não ser quando já era tarde demais, e aí, não quis. Sou algo
teimoso.
O gerente olhava-o com espanto, como se ele
fosse um monstro pré-histórico.
- Então quer dizer que desenvolveu esse
importante comércio e juntou uma fortuna de trinta mil libras sem saber ler nem
escrever? Meu Deus, que não seria o senhor agora, se tivesse aprendido a ler e
a escrever ?
_ Isso eu posso dizer-lhe - respondeu Mr.
Foreman, com um pequeno sorriso nas feições sempre aristocráticas. - Seria sacristão
de St. Peter, em Neville Square.
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