George
Plimpton: Costuma ler manuscritos?
Hemingway:
A não ser que conheçamos pessoalmente o autor, isso pode arranjar-nos
problemas. Há alguns anos, fui processado por plágio por um homem que garantia
que eu tinha ido buscar o Por Quem os
Sinos Dobram a um roteiro de cinema por publicar que ele tinha escrito. Ele
tinha lido o roteiro numa festa qualquer, em Hollywood. Segundo afirmou, eu
estava lá, pelo menos havia um tipo chamado “Ernie” a ouvir, e isso bastou-lhe
para me processar em um milhão de dólares. Na mesma altura, processou os
produtores dos filmes Os Sete Cavaleiros
da Vitória e Cisco Kid com a
argumentação de que também tinham sido roubados do mesmo roteiro. Fomos a
tribunal e, naturalmente, ganhámos o caso. Como se veio a verificar, o homem
estava falido.
George
Plimpton: Regressemos à lista e pensemos num dos pintores – Jerónimo Bosch,
por exemplo. A qualidade simbólica de pesadelo do seu trabalho parece muito
distante do que escreve.
Hemingway:
Também tenho pesadelos e conheço os pesadelos dos outros. Mas não há
necessidade de os colocar no papel. Tudo o que conhecermos e pudermos omitir na
escrita, surge como uma qualidade. Quando um escritor omite coisas que
desconhece, surgem como buracos na escrita.
George
Plimpton: Isso significa que um bom conhecimento dos trabalhos dos autores da
sua lista ajudam a encher o “poço” de que falou há pouco? Ou constituíram uma
ajuda consciente no desenvolvimento das técnicas de escrita?
Hemingway:
Foram uma parte do aprender a ver, a escutar, a pensar, a sentir e a não
sentir, e a escrever. O poço é onde está a inspiração. Ninguém sabe de que é
feita, muito menos nós próprios. O que se sabe é que se tem ou que se tem que
esperar que regresse.
George
Plimpton: Aceita a existência de simbolismo nos seus romances?
Hemingway:
Suponho que haja símbolos, já que os críticos não param de os encontrar. Se não
se importar, desagrada-me falar sobre eles e ser interrogado acerca deles. É
suficientemente difícil escrever livros e histórias sem nos pedirem também para
os explicar. Além disso, rouba trabalho aos explicadores. Se cinco ou seis ou
mais bons explicadores conseguem continuar, por que hei de interferir? Leia o
que escrevo pelo prazer da leitura. Tudo o que encontrar para além disso terá a
ver com o que tiver trazido para a leitura.
George
Plimpton: Mais uma pergunta na mesma linha: um dos editores pensa ter
encontrado, em O Sol Nasce Sempre
(Fiesta), um paralelismo entre o público na arena de touros e as personagens
do próprio romance. Ele lembra que a primeira frase do livro nos diz que Robert
Cohn é um pugilista; mais tarde, durante a desencajonada,
descreve-se o touro como usando os cornos como um pugilista, aplicando ganchos
e golpes. E quando o touro é atraído e pacificado com a presença de um novilho
castrado, Robert Cohn submete-se a Jake que está castrado tal como o novilho.
Ele vê Mike como o picador, engodando Cohn repetidamente. A tese do editor
continua, mas ele pergunta se era sua intenção
ordenar o romance com a estrutura trágica do ritual da tourada.
Hemingway:
Parece que o editor foi um pouco disparatado. Quem disse que Jake “estava
castrado tal como o novilho”? A verdade é que tinha sofrido um ferimento muito
diferente e que os seus testículos se encontravam intactos e sem problemas.
Portanto, ele era capaz de todos os sentimentos normais de um homem, mas incapaz de os consumar. A
distinção importante é que o seu ferimento era físico e não psicológico e que
não estava castrado.
George
Plimpton: Estas perguntas sobre a capacidade artística são aborrecidas.
Hemingway:
Uma pergunta sensata não é nem um prazer nem um aborrecimento. Ainda assim,
acho que é muito mau para um escritor falar sobre a forma como escreve. Ele
escreve para ser lido e não deveria haver necessidade de explicações ou
dissertações. De certeza que há muito mais do que pode ser abarcado na primeira
leitura, mas não cabe ao escritor explicá-lo ou fazer visitas guiadas às
regiões mais difíceis do seu trabalho.
George
Plimpton: A propósito, lembro-me de ter avisado que é perigoso para um escritor
falar sobre um trabalho em decurso porque, digamos, pode dá-lo a conhecer antes
do tempo. Porque é que tem que ser assim? Só pergunto por haver tantos
escritores – Twain, Wilde, Thurber, Steffens, por exemplo – que parecem ter
polido o seu material depois de o testarem em ouvintes.
Hemingway:
Não posso crer que Twain alguma vez tenha “testado” Huckleberry Finn em ouvintes. Se o fez, o mais provável é que o
tenham levado a cortar coisas boas e a acrescentar partes más. As pessoas que
conheciam Wilde diziam que era um melhor conversador do que escritor. Steffen
falava melhor do que escrevia. Grande parte da sua escrita e do que dizia
podiam ser difíceis de acreditar e ele alterou, ao que sei, muitas histórias à
medida que envelhecia. Se Thurber conseguir falar tão bem como escreve, deve
ser um dos melhores e menos entediantes conversadores do mundo. O homem que
conheço que melhor fala sobre a sua profissão e que possui a língua mais
agradável e afiada é Juan Belmonte, o matador.
George
Plimpton: É capaz de nos dizer quanto esforço calculado esteve envolvido no
desenvolvimento do seu estilo distintitivo?
Hemingway:
Essa é uma pergunta longa e cansativa e se passar um par de dias a
responder-lhe, será de um modo tão autoconsciente que tornará impossível
escrever. Posso dizer que aquilo a que os amadores chamam estilo costuma ser a
falta de jeito inevitável quando se começa a tentar fazer algo que ainda não
foi feito. Quase nenhum novo clássico se assemelha aos clássicos anteriores. No
início, as pessoas só conseguem ver a falta de jeito. Nessa altura, não é uma
coisa muito percetível. Quando a falta de jeito se torna muito nítida as
pessoas pensam que é um estilo e muitas começam a copiá-lo. É lamentável.
George
Plimpton: Certa vez, escreveu-me dizendo que as meras circunstâncias em que
vários trabalhos de ficção eram escritos podiam ser instrutivas. Isso é
aplicável a Os Assassinos – disse-me
que tinha escrito essa short story, Ten
Indians e Today is Friday num só
dia – e, quem sabe, ao seu primeiro romance, O Sol Nasce Sempre?
Hemingway: Vejamos… Comecei O Sol Nasce Sempre em Valencia, no meu
aniversário , a 21 de julho. Eu e a minha
mulher, Hadley, tínhamos ido mais cedo a Valencia para tentarmos arranjar
bilhetes para a feria, que começou a
vinte e quatro de julho. Toda a gente da minha idade tinha escrito um romance e
eu ainda estava com dificuldades em escrever um parágrafo. Assim, comecei o
livro no dia dos meus anos, escrevi durante o tempo que durou a feria, na cama, de manhã, e continuei em
Madrid. Em Madrid não havia feria.
Mas tínhamos um quarto com uma mesa e escrevi luxuosamente na mesa e, na
esquina mais próxima, numa cervejaria da Pasaje Alvarez onde estava mais
fresco. Por fim, acabou por ficar demasiado calor para escrever e fomos para
Hendaia. Havia lá um hotelzinho barato junto à esplêndida e enorme praia e
trabalhei muito bem lá. De seguida, fui para Paris e terminei o primeiro
rascunho no apartamento por cima da serralharia, no número 113 de
Notre-Dame-des-Champs, seis semanas depois de ter começado. Mostrei-o a Nathan
Asch, o escritor, que nessa altura tinha um sotaque muito acentuado e que disse
“Hem, que é ke keresh dicer kom teres escrito um livro? Um romanss, hmm. Hem, eshtás a eskrever um lifro de fiagens”. Não me
senti muito desencorajado e reescrevi tudo, tendo mantido a viagem (a parte
sobre a viagem de pesca e Pamplona) em
Schruns, no Voralberg, no Hotel Taube.
As
histórias que diz que menciona, escrevi-as num dia, em Madrid, a 16 de maio,
quando as touradas de San Isidro foram canceladas. Em primeiro lugar, escrevi Os Assassinos, que já tinha tentado
escrever sem sucesso. Depois, a seguir ao almoço, enfiei-me na cama para me
aquecer e escrevi Today is Friday.
Estava tão cheio de inspiração que pensei que talvez estivesse a enlouquecer e
ainda tinha mais uma seis histórias para escrever. Então, vesti-me e fui ao
Fornos, o velho café dos toureiros, tomei café, voltei e escrevi Ten Indians. Senti-me muito triste, bebi
um pouco de brandy e adormeci. Tinha-me esquecido de comer e um dos empregados
trouxe-me um pouco de bacalao e um
pequeno bife com batatas fritas e uma garrafa de Valdepeñas.
A
dona da pensão estava permanentemente preocupada por eu poder não comer o
suficiente e tinha enviado o empregado. Recordo-me de estar sentado na cama a
comer e a beber o Valdepeñas. O empregado disse que ia trazer outra garrafa e
que a Señora queria saber se eu ia passar a noite a escrever. Respondi-lhe que
não e que ia descansar um pouco. “Porque é que não tenta escrever só mais
uma?”, perguntou-me o empregado. “Só tenho que escrever uma”, expliquei. “Qual quê!”,
respondeu. “Podia perfeitamente escrever seis”. “Tento amanhã”, disse eu.
“Tente hoje”, insistiu. “Porque é que
acha que a velha mandou a comida?”
“Estou
cansado”, expliquei. “Disparate!”, disse ele (o termo não foi disparate). “Cansado depois de três
historiazinhas. Traduza-me uma delas”.
"Deixe-me em paz", pedi. "Como é que vou conseguir escrever se não me deixar em paz?". Então, sentei-me na cama e pensei que devia ser um escritor excelente se a primeira história fosse tão boa como esperava que fosse. (continua)
Tradução de Jorge Simões